quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Escravos de todo mundo     
      O Brasil foi um dos primeiros países americanos a conhecer a escravidão e o último a aboli-la.[1] Durante quase quatrocentos anos, indígenas, e posteriormente negros africanos, foram utilizados como instrumentos de produção de riquezas, através da exploração de sua força e energia. Segundo Emilia Viotti, a escravização do negro africano foi à fórmula encontrada pelos europeus para a colonização do novo mundo.[2] No caso do Brasil, constituído como um apêndice da metrópole portuguesa, incorporado ao novo circuito econômico como uma economia voltada para a agro-exportação, era preciso atender a demanda daqueles que para cá vieram se instalar e produzir gêneros variados, além de explorar os recursos existentes. Para isto, fazia-se necessário um vultoso contingente de braços para o trabalho nas lavouras, que de acordo com Florestan Fernandes seria utilizado como uma modalidade de energia que podia ser concentrada e utilizada intensivamente através da organização social do trabalho escravo como se o organismo humano fosse uma máquina.[3]                       
            A violência do regime não pode ser contestada. A questão é que não tivemos apenas estes fatos. Como bem observa Chalhoub quando relata que a “violência da escravidão não transformava os negros em seres incapazes de ação autonômica, nem em passivos receptores de valores senhoriais, tampouco em rebeldes valorosos e indomáveis.[4]
Vários estudos mais recentes têm demonstrado que estas resistências devem ser entendidas não como “passivas”, mas sim como “uma das faces das complexas lutas vivenciadas pelos escravos e De acordo com Flávio Gomes passa a haver uma contestação das concepções que viam as relações senhor/escravo marcadas tão somente por uma visão paternalista da escravidão. [5] Há uma maior ênfase na descrição dos quilombos e seus líderes de caráter revolucionário com maior consciência de suas ações, além da análise de outras formas de resistência, como determinadas negociações buscando melhorias em sua vida cotidiana, que até então foram descritas como passivas e de caráter histórico desmerecido que tinha como contraponto a reelaboração permanente das relações com seus senhores”.[6]
O que se pode entender destas formas de resistência, é que através delas, os escravos buscavam se reconstituir como pessoas, alterando, modificando e adequando a dominação senhorial na tentativa de reconstruírem suas vidas. Trata-se de novos meios para enfrentar o sistema, que não se limitou a insurgências e fugas. Gomes relata, por exemplo, que negros escravos no Caribe estavam muito bem informados a respeito das discussões no parlamento inglês,e tentavam na medida do possível, tirar proveito de tal situação, a partir de suas próprias lógicas”.[7]
Outra questão interessante é a ligação que se faz de imediato quando se fala de escravidão. Logo nos vem a cabeça o negro e a escravidão. Trata-se de um grande erro, que é parte integrante do imaginário da maior parte das pessoas. O fato é que a escravidão existe desde tempos remotos, e foi muito difundida na antiguidade, tanto na Eurásia, quanto na África. Na Europa podemos citar a Grécia antiga e principalmente o Império Romano, como povos que tinham este regime vinculado as suas práticas cotidianas.
Para termos uma idéia de como o comércio de escravos pode ter seguido um caminho diferente daquele que conhecemos, que se dirigia da África para a Europa, a informação de Maestri de que no começo do século XVII, cerca de 250 mil europeus viviam como escravos na África do norte é extremamente reveladora.[8] Esta afirmativa demonstra que o fluxo de escravos em determinados momentos da história seguiu caminho inverso, indo da Europa para África. Os gregos que também já utilizavam a escravidão, e esta se via inserida em seu cotidiano sendo definida por leis, tinham nas obras de seus grandes pensadores como, por exemplo, Aristóteles (384-322 a.C.) sua afirmação ideológica. Este filósofo em uma de suas principais obras nos diz que há na “espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação á alma... Partindo dos nossos princípios, tais indivíduos são destinados, por natureza á escravidão; porque, para eles, nada é mais fácil do que obedecer”.[9] Em “A política”, Aristóteles não faz menção ao negro africano. Este filósofo ao descrever a escravidão e o escravo, em nenhuma página cita diretamente o negro. A escravidão no mundo antigo e neste período em que este autor escreve se insere em um momento em que as relações entre estes continentes - África e Europa- ainda não haviam se estreitado.[10]Logo, a difusão da relação entre a África e a escravidão, assim como o negro e o cativeiro são criações modernas, bem mais recentes, que devido à legitimação de um sistema, fez-se necessário povoar o imaginário social com a “certeza” da aptidão dos povos africanos para o trabalho escravo e de sua “inferioridade” como “raça”. Quando falo de criações modernas, não quero dizer que a escravização de pessoas naquele continente seja posterior ao século XVI. A ocorrência da escravidão na África é anterior a chegada dos europeus. O que ocorre é que a partir da intensificação dos contatos com os mercadores da Europa, este sistema será ampliado em uma escala superior.
A escravidão na África, assim como em várias outras regiões do mundo, existiu por muitos séculos e razões diferentes. Os motivos para levar uma pessoa ao cativeiro poderiam variar de época e lugar. Em África, Inimigos derrotados eram convertidos em escravos, bem como pessoas endividadas ou condenadas por crimes.[11] Neste continente, ao contrário da Europa, os cativos eram a única forma de propriedade privada lucrativa reconhecida pelas leis locais. Já na Europa era a posse de terras a principal forma de propriedade privada geradora de lucros, e por este motivo a escravidão ocupava na Europa uma posição inferior.[12] Esta mesma diferença que colocava o escravo como forma de produção de riquezas, foi um dos fatores que levaram a disseminação da escravidão na África. Podemos dizer que África e Europa possuíam sistemas diferentes sem que se possa dizer que o sistema social africano fosse inferior ou retrógrado ao europeu, mas somente legalmente divergente.[13]
Entre estes dois sistemas, a escravidão clássica e a moderna, encontraremos mais diferenças do que similaridades, mas o cerne do sistema que era a privação de liberdade será uma constante em ambos.[14]
 A partir de 1650 o comércio de escravos na África tende a ter um maior desenvolvimento por conta da intensificação dos contatos com os europeus, que passam a forçar os africanos a exceder sua capacidade de fornecimento de cativos, num momento em que as colônias da Europa na América passaram a necessitar cada vez mais de mão de obra para sua produção agrícola nas regiões caribenhas.[15] Este aumento na intensidade do tráfico provocou uma diminuição demográfica no continente já no fim do século XVIII. O inverso desta diminuição fora a presença maciça de africanos nas Américas, que passaram a ter uma influência importante no desenvolvimento do chamado novo mundo. 
Esta presença fica evidente quando analisamos a economia americana, que teve como base na maior parte de sua história a utilização da mão de obra negra africana escravizada, que por conseqüência trouxe influências culturais que ajudaram a moldar a religião, a filosofia, a culinária, a língua e a própria aparência a partir da grande miscigenação ocorrida entre europeus, indígenas e os próprios africanos. A atuação destes como força de trabalho foi crucial para delinear sua influência no mundo atlântico. [16] Com relação a estas influências na cultura americana, Thornton nos diz que os africanos tiveram-na em grau superior a dos nativos da América.[17]  Grande abraço a todos e viva a semana nacional da consciência negra!
                                                            Alex Grijó


[1] MAESTRI, Mário. O escravismo colonial/São Paulo: Atual, 1994, pp.5.
[2][2] VIOTTI, Emília. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II – O Brasil monárquico, Bertrand Brasil, 2004, pp.135.
[3] IANNI, Octavio. Florestan Fernandes/ – 1ªedição, São Paulo: Ática, 2008, pp.230.
[4] CHALHOUB, Sidney. Op.cit, pp.43.                                                                         
[5] GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995,pp.17-19.
[6] Idem, pp.30-31.
[7] Ibdem, pp.17.
[8] Idem.p.10.
[9] ARISTÓTELES. A política. São Paulo. Editora Escala.s/d, pp.19.
[10] THORNTON nos diz que as intensas navegações no início do século XV levaram a interação de quatro continentes quando antes havia pouca ou nenhuma comunicação. THORTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico, 1400 – 1800/Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.p.41.
[11] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009.p.195-198.
[12] THORNTON, John Kelly. Op.cit, p.123 – 125.
[13] Idem. Op. cit.p.127.
[14] FLORENZANO, Maria Beatriz B. O mundo antigo: Economia e sociedade (Grécia e Roma) São Paulo, Ed. Brasiliense, 1986, p.68-71.
[15] THORNTON, John. Op.cit, p.174-175.
[16] Idem, p.190-191.
[17] Ibdem, p.191.

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