quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Quando Motta Coqueiro Me Assombrava...

Existem alguns acontecimentos de nossa infância que ficam guardados durante muitos anos em algum lugar de nossa memória que não sabemos exatamente onde é este lugar. Ouvimos histórias sobre monstros e seres fantasmagóricos horripilantes e que em nossa frágil e inocente visão de mundo, “existem” de fato. Chegamos a conhecer pessoas que contam “fatos” como se realmente os tivessem vivenciado. Em cidades do interior isso é mais comum ainda. Muitos são os que podem contar uma “real” experiência com alguma assombração. Já ouvi inúmeras. Eu mesmo tenho uma a contar de meus tempos de criança, e que depois de alguns anos de vida e uns poucos de estudo veio a se descortinar como a história do famoso caso de assassinato de uma família de camponeses e o posterior enforcamento de Manoel da Motta Coqueiro como mandante do crime. 
Segundo Armando Borges este foi o crime de maior repercussão ocorrido durante o período imperial brasileiro (Borges, p.134). Esta repercussão seria em virtude da grande brutalidade do crime, em que uma família inteira de camponeses teria sido morta, e também pelas inúmeras dúvidas suscitadas em relação à culpa de Motta Coqueiro, que teria desde o início negado ser o mandante do crime.
Em minha infância morando no tradicional bairro da Aroeira em Macaé, ouvia como de costume a época, várias histórias e lendas locais. Havia uma que particularmente me deixava com muito medo. Era a lenda do homem serpente enterrado em um túmulo amarrado com correntes no cemitério de Santana. Diziam que ele costumava forçar as paredes do túmulo para sair, e que isto já teria ocorrido algumas vezes. Por este motivo seu túmulo teria sido amarrado com correntes para que não mais fugisse.
Sempre que passava ao pé do morro que dá acesso ao cemitério ficava olhando lá para cima com um misto de medo e curiosidade. Quando de alguns velórios que eu acabava tendo de ir acompanhando meus pais, ficava intrigado, e às vezes chegava a me “arriscar” a tentar, meio que timidamente, encontrar tal túmulo.
Muitos anos se passaram até que eu conhecesse a “real” história de Manoel da Mota Coqueiro e o que tinha de fato na lenda do homem serpente acorrentado. Vamos conhecer então a história de Manoel da Motta Coqueiro e a relação com a lenda de minha infância.
Manoel da Mota Coqueiro foi um político e proprietário de terras residente na cidade de Campos dos Goytacases que adquiriu uma fazenda em Macaé na região que hoje é o município de Conceição de Macabu.  Era uma região de terras férteis com ligação ao canal Macaé-Campos que facilitaria o escoamento de sua produção. Após a compra da fazenda, Motta Coqueiro começou os preparativos para fazê-la produzir. Comprou escravos, contratou pessoas livres e admitiu a pedido de um amigo, uma família de colonos contando com oito pessoas que tinha como chefe o senhor Francisco Benedito da Silva. Foi ai que começaram seus problemas.
O Brasil vivia a época um momento de intensas transformações. Havia acabado de extinguir seu tráfico de pessoas vindas do continente africano e aprovou uma lei de terras (que na verdade apenas beneficiou fazendeiros e aumentou ainda mais suas propriedades fazendo com que pessoas pobres, ex-escravos e ou os raros imigrantes não tivessem acesso a terra) e que segundo Sergio Buarque de Holanda, essas transformações “só poderia levar a liquidação de nossa velha herança colonial”.  
De acordo com o Historiador Marcos Costa, autor do livro “o Reino que não era deste mundo” esse período foi um momento de vitalidade excepcional, tanto nos negócios quanto em questões de infraestrutura. O Brasil começava a dar alguns passos no caminho da “modernidade”.
Mesmo com esses passos no caminho da modernidade ainda convivíamos com o espectro da escravidão e com uma desigualdade extremamente elevada. Algumas pessoas ainda eram tratadas como coisas e pouco ou nenhum direito possuíam. É curioso acreditar que um homem poderoso como Coqueiro pudesse ser condenado por um crime tendo como testemunhas de acusação escravos e pessoas que nada presenciaram. Em livro contando a História de Conceição de Macabu, Carlos Marchi escreve sobre as lições do caso Coqueiro.  Marchi afirma que houve uma armação política para condenar a qualquer custo Motta Coqueiro.
Após comprar a fazenda começou a organiza-la trazendo animais e escravos de suas propriedades em Campos dos Goitacases. Motta coqueiro acabou por se envolver com uma filha de Francisco. Conta-se que a esposa de Coqueiro teria ficado sabendo do romance através de um escravo que teria flagrado um encontro.
Sua esposa o interrogou sobre o fato, que ele obviamente negou, mas ela exigiu que ele expulsasse a família de Francisco de suas terras.  Francisco resistiu em sair, pois alegou ter muitas benesses feitas nas terras e que havia plantios a serem colhidos. Armando Borges conta que ao saber da recusa do lavrador de sair das terras, Dona Úrsula teria prometido tomar providências. Dias depois Francisco e sua família foram alvo de um ataque de jagunços que o agrediram e tentaram incendiar sua casa. Borges afirma que “Mota Coqueiro fora acusado de mandante, fato este que o deixou muito revoltado, pois só viera a saber do acontecido três dias depois ”.
Em 12 de setembro de 1852, novo ataque contra a casa de Francisco e finalmente o objetivo alcançado: a casa é incendiada e sete pessoas mortas. A moça com quem Coqueiro se envolvera consegue fugir. Coqueiro, que se encontrava na Cidade de Campos no dia do ocorrido, foi informado ao chegar à fazenda no dia seguinte por seu capataz Fidelis. Borges conta que ele teria ficado consternado com o fato e teria dito que tinha certeza de que iria ser acusado de mandante do crime.  
Coqueiro teria tido um julgamento cheio de contradições e acontecimentos incomuns, como ter escravos depondo contra o mesmo. Teria sido alvo de um complô articulado que teria entre seus idealizadores um primo seu, que teria uma mágoa por conta de um amor no passado que teria sido seduzida por Manuel da Motta Coqueiro.
Após a condenação, ele foi enforcado no dia 06 de março de 1855, tendo ficado preso na cidade do Rio de Janeiro entre 1852 e 1855. Retornou a Macaé para seu enforcamento. Parada nos informa que os motivos para seu aprisionamento na capital se deu devido à hostilidade dos macaenses por conta de tal terrível crime, e segundo por conta da precariedade da cadeia municipal. A cadeia se localizava na esquina das ruas visconde de Quissamã com governador Roberto Silveira.
 Parada nos conta que no ano de 1897 foi encontrado um esqueleto algemado nos arredores do cemitério de Santana. Essa descoberta foi possível devido à necessidade de aumento do cemitério. Ainda segundo Parada o esqueleto estava em perfeito estado de conservação e foi posteriormente colocado em exibição pública nas dependências do jornal “O Século”. Ainda segundo este autor muitas dúvidas foram levantadas sobre a origem do esqueleto e a conclusão a que chegaram é que deveria ser de algum escravo morador de alguma fazenda das vizinhanças (Parada, p.25). 
Com o passar dos anos, com as histórias sendo contadas oralmente muita coisa se perde, e outras são acrescidas. O sepultamento da Fera no cemitério de Santana, e a descoberta mais de 40 anos depois de um esqueleto algemado podem ser os elementos que irão construir a lenda do homem serpente (fera) com o túmulo acorrentado.  
Ecléa Bosi nos diz que lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje as experiências do passado”. E essa reconstrução, os seres humanos fazem e refazem a todo o momento. A memória é seletiva. Selecionamos e guardamos detalhes parciais de determinados acontecimentos, e quando contamos sempre falta algo, da mesma forma que aquele que nos ouve, ao reproduzir, jamais contará da mesma forma.
Desta forma a lenda do homem serpente e o caso de Motta Coqueiro chegaram até minha infância. Muitos outros ouviram estas histórias de variadas formas, com diferentes elementos que serviram e continuam a servir para incrementar e colorir nosso imaginário, deixando o folclore local sempre tão apaixonante e renovado a cada dia.

Referências.

BORGES, Armando. Histórias e lendas de Macaé. Itaperuna, Damadá artes gráficas, 2005.
_________. O último enforcado. Itaperuna, Damadá artes gráficas, 2004.

COSTA, Marcos. O reino que não era deste mundo. Rio de Janeiro. Valentina, 2015.

FRANCO, Maria da Conceição Vilela. Morte, Memória e História: a sepultura de Motta Coqueiro como lugar de reprodução simbólica do imaginário social macaense. Acessado no dia 20 de outubro de 2015 na página: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308165251_ARQUIVO_TEXTOCOMPLETO-01.pdf.

GOMES, Marcelo Abreu (Org). Conceição de Macabu.  História das origens até a segunda emancipação. Livro digital gentilmente cedido pelo Professor Marcelo Abreu Gomes.


PARADA, Antonio Alvarez. Histórias curtas e antigas de Macaé. Rio de Janeiro, Artes Gráficas, 1995.