segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A polêmica sobre as famílias no cativeiro...

Saint-Hilaire- Você naturalmente se aborrece vivendo muito só no meio do mato?
Escravo – nossa casa não é muito afastada daqui; além disso, eu trabalho.
S.H.-você é da costa da África. Não sente algumas vezes saudades de sua terra?
Escravo – não, isto aqui é melhor; não tinha ainda barba quando vim para cá; habituei-me com a vida que passo.
S.H.- mas aqui você é escravo; não pode jamais fazer o que quer.
Escravo – isso é desagradável, é verdade; mas meu senhor é bom, me dá bastante o que comer; ainda não me bateu seis vezes desde que me comprou, e me deixa tratar da minha roça. Trabalho para mim aos domingos; planto milho e mandubis (arachis) com isso arranjo algum dinheiro.
S.H.- é casado?
Escravo – não; mas vou me casar dentro de pouco tempo; quando se fica assim, sempre só, o coração não fica satisfeito. Meu senhor me ofereceu primeiro uma crioula, mas não a quero mais: as crioulas desprezam os negros da costa. Vou me casar com outra mulher que a minha senhora acaba de comprar; essa é da minha terra e fala minha língua.[1]
                                                     

O texto acima trata de um diálogo registrado no diário do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire que percorreu o Brasil a partir do início do século XIX, e um escravo. Tal encontro teria ocorrido na região do atual estado de Minas Gerais. Nele podemos encontrar assunto para uma série de discussões e questionamentos a respeito da escravidão e do modo de viver dos escravos. A parte que interessa para esta pesquisa é a relativa à roça e a família cativa. No texto fica clara, tanto a roça, para ser trabalhada em seu dia, ou dias de folga, quanto à constituição de família pelo escravo. Com relação à família cativa, tema deste capítulo, sua amplitude e existência, trata-se de campo de pesquisa que passou a despertar maior interesse em períodos e épocas recentes. Seus estudos exigem minuciosa pesquisa, pois “penetrar na comunidade escrava tem sido uma das tarefas mais difíceis que os historiadores se Atribuíram”.[2] Existem muitas referências a família cativa, mas na maior parte dos casos, são documentos que tratam a questão com um olhar impregnado de preconceitos. Muitos relatos se apresentam com riqueza de detalhes, mas que merecem cuidados, afinal, foram produzidos por homens que tinham a escravidão como algo natural e permanente. Boa parte destes relatos acabou por fazer uma descrição desmerecedora sobre a “constituição” de famílias cativas.  Os “olhares brancos” dos viajantes e dos brasileiros e portugueses bem nascidos que escreveram sobre o assunto, simplesmente não perceberam os lares negros devido a seus preconceitos raciais, culturais e ideológicos.[3] Devido a estes preconceitos é que talvez seja possível entender declarações como a de Charles Ribeiroles, que, ao descrever a vida do escravo no cativeiro relatou da seguinte forma:

“A fome macilenta não entra na habitação do escravo (...). Mas nela não há famílias, apenas ninhadas. (...) O trabalho, para ele, é aflição e suor, é a servidão. Por que manteria a mãe seu cubículo limpo? Os filhos podem lhe ser tomados a qualquer momento, como os pintos ou os cabritos da fazenda, e ela mesma não passa de um semovente. (...) Nos cubículos dos negros, jamais vi uma flor: é que lá não existem esperanças nem recordações.[4]


 O relato acima se enquadra como uma clara definição do olhar do homem europeu, branco, bem nascido, dito “civilizado”, diante de um quadro totalmente contrário ao seu, em que o mesmo “acredita” estar diante de um ser “semovente”, pouco ou nada racional, equiparado a coisas e animais. Ribeiroles tinha um padrão definido do que seria uma “família”, e o que vira nas senzalas brasileiras passava ao largo de suas definições “ideais”. Mesmo assim, é através destes relatos e da análise minuciosa de outros documentos, como registros batismais, cartorários, autos de prisão, documentos de compra e venda, processos crime de escravos e ordenações reais, que tem sido possível entender um pouco melhor este seguimento social e suas práticas cotidianas, tanto em propriedades escravistas quanto em aldeamentos quilombolas. Assim como a economia cativa (brecha camponesa), a existência da família escrava também é alvo de polêmicas e discussões acirradas. Schwartz afirma que

a questão da família escrava no Brasil- sua existência, estrutura, estabilidade, longevidade e seu papel dentro da vida dos escravos e da história de seus descendentes- há muito é questão de interesse, mas só recentemente tornou-se tema de pesquisa séria. Os comentários depreciativos de alguns observadores e abolicionistas do século XIX acerca da promiscuidade, da falta de laços de família e da fragilidade desta perante a venda e a separação, foram repetidos e embelezados por historiadores e sociólogos posteriores, para explicar os subseqüentes padrões contemporâneos negativos da comunidade afro brasileira.[5]


3.2. A SUPERIORIDADE MASCULINA NO CATIVEIRO
Um dos principais críticos á existência da família escrava no Brasil é Jacob Gorender. Para este autor um dos problemas para a formação desta família se encontrava na questão da razão e proporção entre os sexos. O número de homens fora sempre superior ao de mulheres, ficando em torno de 1/3 do total de homens. Logo, realmente podemos entender que houve de fato uma grande desproporcionalidade. Vejamos o que o mesmo diz:

Acontece que, no segmento dos plantéis grandes e médios, a razão de masculinidade (proporção numérica de homens para cada cem mulheres) era de 188. Demonstração de que, á altura de 1872, a preferência do plantador pelo escravo masculino continuava tão acentuada nas fazendas cafeeiras de Campinas, quanto à época do tráfico africano. Disso resultava que apenas 30% dos homens adultos eram casados ou viúvos.[6]


Baseado nas afirmações de Gorender pode-se constatar que o número de escravos masculinos e solteiros foi de proporção elevada. A falta de mulheres era realmente um grande empecilho para o desenvolvimento considerável de famílias cativas. Mesmo assim, o mesmo nos afirma que “30% dos homens adultos eram casados ou viúvos”. Acredito que possamos entender este número como algo de proporção considerável. Veremos mais adiante por que. Outros autores como Roger Bastide e Florestan Fernandes, também contrários a idéia de família cativa, seguem na mesma linha de pensamento. Para estes autores, a presença masculina em tal “família”, seria praticamente inexistente. A formação de laços sociais entre os escravizados seria praticamente impossível. Robert Slenes, considerado por muitos o principal especialista em pesquisas referentes à família escrava no Brasil, teceu as seguintes críticas a respeito da análise de Bastide e Fernandes. Vejamos:

  Nas propriedades maiores, a experiência de viver numa família conjugal estável era a norma para a maioria de mulheres e crianças escravas. Além disso, em propriedades “maduras”, com muitos anos de funcionamento, essa estabilidade se traduzia na existência de muitas famílias extensas, contando com a presença de três gerações e a convivência entre irmãos adultos e seus respectivos filhos. Se o tráfico africano e interno despejava sempre mais “estrangeiros” (principalmente homens) nas fazendas da região, não é verdade que a maioria dos cativos, muito menos mulheres e crianças, estivessem perdidos uns para os outros, vivendo em condições de anomia. Portanto, as conclusões de Fernandes e Bastide a respeito do processo de aculturação dos escravos, de sua incapacidade “política” e das causas de sua falta de mobilidade social após a abolição, são improcedentes.[7]


3.3. AS RELAÇÕES DE COMPADRIO ENTRE OS ESCRAVOS

Robert Slenes e Sheila de Castro Faria fizeram comparações entre a demografia escrava do oeste paulista e a do Vale do Paraíba (tanto paulista quanto fluminense), estando incluídos ai os Campos dos Goytacazes. Baseado em tais pesquisas, os mesmos afirmam que “os senhores encaravam o casamento formal escravo não apenas como uma instituição que contribuía para a reprodução, mas também como elemento simbólico para seu domínio.[8]
Entre as fontes utilizadas para pesquisas que objetivam encontrar os indícios da família escrava, as fontes batismais são de grande importância para esclarecer o assunto. Schwartz ao analisar estas fontes no capítulo seis de obra já citada neste trabalho, apresenta a relação de compadrio na vida familiar brasileira. O mesmo tenta buscar a presença do escravo dentro deste sistema.[9] Sobre estas relações, o mesmo nos relata que

podiam-se estabelecer relações de compadrio de diversas maneiras: por intermédio de casamento, crisma, ou mesmo em certas festividades, como a do dia de São João, quando ao dar as mãos e pular a fogueira juntos, os indivíduos podiam tornar-se “compadres da fogueira.” A igreja não aprovava essas criações populares de compadrio, mas o costume continuou... No contexto do catolicismo, o batismo era a principal maneira de tornar qualquer indivíduo, escravo ou livre, membro da sociedade cristã. Não obstante, os escravos tinham diversos meios de criar elos de associação ou formas de parentesco, tanto dentro das estruturas da sociedade predominante quanto fora delas. Os laços criados pela etnia, pela língua, pela religião e pela política africana continuaram a funcionar no Brasil, como demonstram as rebeliões etnicamente organizadas do início do século XIX. [10]


Como se pode ver, as relações de compadrio poderiam ocorrer de diversas formas, e objetivavam a formação de laços sendo de sangue ou não. O africano recém chegado, para tornar-se membro da sociedade cristã, teria de ser batizado, e o mesmo ocorrendo com os nascidos aqui, em terras brasileiras, filhos de outros escravos. Se para o batismo se fazia necessário a presença da madrinha e do padrinho, conseqüentemente teríamos de ter, na maior parte dos casos, a presença de ambos os pais. Estaria aí um indício da formação de famílias escravas. Florentino e Góis enfatizam que

pelo casamento e, antes ou depois, por meio do nascimento de uma criança escrava, vários indivíduos criavam ou estreitavam laços que, nas difíceis circunstâncias da vida em escravidão, eram laços de aliança. A mãe e o pai da “cria” (como aparecem nas fontes) viam reafirmando o propósito comum de juntarem suas forças de modo à melhor viver à vida possível. Ambos arrumavam um compadre e, muitas vezes, uma comadre. E, talvez, cunhados, cunhadas, sogros e sogras. E se a criança, o que não era fácil, sobrevivesse até a idade de procriar, muito mais alargada ainda seria essa rede de laços de solidariedade e aliança. Parece óbvio que a criação de laços parentais fosse desejo de todos os escravos.[11]


 Reconstruir laços, formar nova família, estaria ao lado da liberdade entre os objetivos de vida destas pessoas. Seu surgimento, que é pressuposto para o desenvolvimento da roça escrava, pode ter decorrido de pelo menos dois fatores: a concessão senhorial, visando à manutenção da ordem, ocasionando diminuição nas fugas, e, por outro lado, pressões exercidas pelos escravos na busca por redes de alianças familiares. Albuquerque afirma que “os cativos “buscavam manter relações conjugais estáveis, além de construir redes de parentesco extensas para além dos laços consangüíneos”.[12]
A relação de compadrio seria um dos meios para obtenção de tais laços. Entretanto, a formação destas famílias enfrentava outros problemas que são apontados pelos críticos, e que estão relacionados à compra e venda de pessoas. Tais críticas partem do pressuposto de que se uma família se formasse, não havia garantias de que ela se perpetuasse, afinal, os senhores poderiam em algum momento vender um dos “cônjuges” e acabar por desfazer esta relação. Com certeza, a ampla maioria dos cativos vivia sob esta ameaça. Mesmo assim, “estudos mais recentes no Brasil têm demonstrado que, nas grandes plantações de café e cana, parte considerável dos cativos conseguiu criar e manter relações familiares.[13]
A autorização dos senhores escravocratas para a formação familiar, poderia basear-se na idéia de que esta formação poderia fazer com que o escravo se fixasse a terra, e acabasse criando para si mesmo, maiores empecilhos para a fuga, afinal, fugir com mulher e filhos seria algo muito mais difícil. Reis e Silva já nos deram a informação de que no sul dos Estados Unidos, pelo menos 80% dos fugitivos eram homens e jovens com idade média de trinta e cinco anos. Esta afirmativa nos revela indícios de que casais, principalmente com filhos, dificilmente buscariam as fugas. Logo, incentivar o desenvolvimento de família entre os escravos poderia diminuir estes problemas.
Se por um lado os escravos podem ter buscado a formação de famílias, por outro os senhores podem ter encontrado na mesma um instrumento de contenção de fugas e revoltas. Albuquerque confirma esta hipótese afirmando que,

No interesse de garantir condições mínimas de segurança para si e para sua propriedade, houve senhores que preferiam garantir alguma estabilidade familiar aos seus cativos. Na visão desses senhores, o escravo preso ás responsabilidades familiares tinha menos predisposições para fugir ou rebelar-se.[14]


 3.4 – Casamentos entre cativos e libertos: aumento na mão de obra da fazenda.

Pode-se constatar que de fato os senhores viam a formação das famílias cativas como um instrumento para apaziguar possíveis descontentamentos e perdas econômicas provenientes das fugas e do atraso na produção. Fazer concessões aos cativos passa a ser uma opção necessária para a manutenção da ordem do sistema. A utilização única e exclusiva da violência como instrumento de domínio não poderia perdurar por muito tempo. Por mais que senhores utilizassem-na em larga escala durante todo o período da escravidão, estes teriam de enfrentar as reações dos escravizados, que em muitos casos, atentava contra a vida do senhor em igual ou maior proporção.
A idéia de que certo número de cativos chegou a possuir família e um pedaço de terra para plantar em proveito próprio, não quer dizer que a escravidão não fora malévola. Não está se tentando descrever um cativeiro menos violento ou paternalista. A violência fora utilizada em demasia; não há o que se questionar. Mas há que se levar em conta que havia outros fatores, que são derivados dos constantes enfrentamentos e revoltas que esta violência desencadeava. É a violência contra o cativo que irá levar a sua revolta, e esta reação provocará prejuízos ao seu senhor, que terá de buscar estratégias para controle da escravaria. Por outro lado fica clara a apropriação do escravo destas possíveis concessões em benefício próprio, procurando levar à vida da melhor forma possível, buscando ajustar as condições que lhe foram impostas ao seu modus vivendi. Com relação à formação dos casais, estes também sofriam variações. Os casamentos não se davam apenas entre cativos. Poderiam ocorrer também entre estes e libertos.  Muitos casamentos deste tipo acabaram sendo incentivados por senhores por um fato que passaria a proporcionar um aumento na mão de obra, tendo em vista que o liberto possivelmente passaria a viver na propriedade, já que o escravo dificilmente iria para fora dela.
A maior parte dos registros de matrimônio constante dos arquivos de várias paróquias no país apresenta um número pequeno de registros de casamento de cativos com cativos. Possivelmente a incidência de casamentos entre cativos e libertos se daria devido à libertação de apenas um dos membros do casal, e que os mesmos já poderiam manter uma relação desde o cativeiro. Como já assinalado, esta situação proporcionaria para o proprietário a manutenção ou aumento da mão de obra, com a permanência do liberto na mesma propriedade do ainda cativo. Os registros oficiais destas uniões são de pequena proporção. Uma das explicações para este fato pode ser esclarecido com a afirmativa de que a maior parte das uniões “estáveis” não passava pelo reconhecimento da igreja. Iraci Del Nero e Francisco Vidal Luna assinalam que

ao longo da história brasileira houve predomínio maciço, entre os cativos, do intercurso sexual não legitimado, vale dizer: parcela ínfima das uniões a envolver pelo menos um parceiro escravo via-se sacramentada pela Igreja.
Do exposto, conclui-se que não se verificava rigidez absoluta com respeito às uniões entre indivíduos de segmentos sociais distintos, ainda que raros, entre senhores e seus próprios cativos.[15]


 Pode-se concluir que os números dos registros oficiais não apresentam com clareza a totalidade dos casos. Muitos relacionamentos foram “oficializados” apenas mediante autorização senhorial, e sem o reconhecimento da igreja. Conseguir legitimar a união e a conseqüente formação familiar diante da mesma, não seria provavelmente algo fácil. Costa e Gutierrez complementam dizendo que os escravos tinham de desenvolver “formas de convivência que fugia aos hábitos e costumes dos livres, e, sobretudo da igreja católica.” [16] Costa e Luna enfatizam que estas dificuldades estavam ligadas a questão do alto custo cobrado pela igreja para a sacralização do ato. Devido a isto, famílias cativas teriam se formado e perdurado ou não, dentro dos limites da fazenda, sem que fossem feitos os registros oficiais diante da igreja. A conseqüência esperada desta união, pelo menos por parte dos escravos, estava ligada a longevidade da relação. Vale frisar, que esta longevidade estava ligada a estabilidade econômica do proprietário, pois esta influenciava a união e a durabilidade da relação entre os cativos, pois se o mesmo (o senhor) estivesse em boas condições financeiras, não precisaria negociar seus escravos com regularidade, além de possibilitar um maior número de casais. Fato apurado na maior parte das pesquisas se refere à questão de que nos plantéis de número elevado de cativos, é que se verificavam maiores possibilidades de formação de famílias. Metcalf registrou em suas pesquisas em Santana do Parnaíba, que, além disto, houve uma predominância de famílias constituídas por mãe e filho. Vejamos:     

a estrutura econômica da escravidão em Parnaíba e a instabilidade da vida familiar dos escravos de pequenos proprietários encorajaram a formação de famílias escravas matrifocais. Tais famílias formaram-se como parte do ciclo familiar dos escravos, surgindo em épocas de mudança econômica na vida dos proprietários-quando escravos eram vendidos - ou após herança- quando famílias eram separadas. Em tais épocas, o laço familiar mais provável de ser reconhecido e mantido pelos senhores era o entre a mãe e filhos. Por razões bastante práticas conservavam-se freqüentemente as mães junto com seus filhos, especialmente os pequenos proprietários, para que elas pudessem continuar a criá-los. O vínculo entre mãe e filhos, foi de certa forma, o menor denominador comum da família escrava, e aquele com maior probabilidade de sobreviver aos deslocamentos durante o ciclo familiar escravo causados por herança ou mudanças econômicas na vida do proprietário.[17]


Pesquisas realizadas por Edson Fernandes no estado de São Paulo, em Lenções, no período entre 1860 e 1888, constataram uma porcentagem em torno de 1/3 de casados ou que já teriam médio na maior parte das propriedades. Nos inventários de Lenções entre os anos de 1860-1887, 36,8% deles eram casados ou viúvos, sendo 35,7% entre os homens e 38% entre as mulheres.[18] Se o número de mulheres era de fato reduzido, ficando em um terço do número de homens, pode-se constatar que este mesmo número estimado em 1/3 é o que representa o número de escravos que conseguiram formar família. Convenhamos que se trata de um número significativo se levarmos em conta que até algumas décadas, o viver escravo era atrelado ao desrespeito a regras sociais (anomia) e a promiscuidade. Sobre isto, Slenes comparou os casos do estado da Virginia nos Estados Unidos com o Brasil e as pesquisas de Kátia Matoso, e constatou que estes estudos não são suficientes para se caracterizar estado de anomia entre os cativos, mas que se pode identificar “outras estratégias para criar uma comunidade, enfatizando a importância de parentes na substituição de pais e, de não parentes no preenchimento de papéis vazios na família extensa”. [19]
A constituição de laços funcionaria não apenas como reconstrução ou inserção social por parte destas pessoas, mas poderia ter também o enfrentamento tanto a senhores quanto ao regime como um de seus signos. Pode se entender que o surgimento destas famílias emergiria de um constante “conflito entre escravo e senhor. O senhor é forçado a ceder certo espaço para os escravos formarem famílias, encarando isso, porém como parte de uma política de desmonte de revoltas.[20] Deve-se atentar para o fato significativo de que estas revoltas não seriam fruto apenas da violência imprimida pelo sistema. Poderiam surgir também a partir “de uma reflexão por parte de seus integrantes sobre sua própria experiência, entendendo por experiência o seu passado no continente africano. Sobre a política de concessão senhorial, Slenes entende que a mesma funcionava em certa medida, e que

Ao dar ao escravo algo a perder, ela o torna vulnerável, transforma o cativo em refém. A médio e longo prazo, contudo, o espaço acaba sendo altamente subversivo, pois é usado pelos escravos como lugar de criação e transmissão de uma identidade própria, antagônica á dos senhores e forjada a partir da descoberta de tradições africanas compartilhadas.[21]


A formação das famílias cativas se processava em meio a inúmeras variantes. As possibilidades de manutenção familiar estavam sob constante ameaça. Mesmo assim, foi possível verificar algo em torno de 30% de escravos casados e com famílias que em muitos casos se reproduziram em mais gerações. Tendo em vista a crueldade do regime, obter tais “benefícios” fora algo de grande importância para os cativos, que obtinham através destes laços a “reconstrução” dentro do possível, de algo parecido com aquilo que um dia tiveram em sua terra natal e que puderam chamar de família.


  



[1]SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pela província do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Tradução de Vivalde Moreira. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: EDUSP, 1975, p.53. Apud: De Carli, Caetano. A família escrava no sertão Pernambucano. (1850-1888). Dissertação de mestrado (mimeo) Universidade d Brasília, 2007, introdução.
[2] SCHWARTZ, Stuart. Op.cit.p.263.
[3] SLENES, Robert. FARIA, Sheila de Castro. Op.cit.p.4.
[4] SLENES, Robert. Na senzala uma flor –Esperanças e recordações na formação da família escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Epigrafe – contraponto.
[5] SCHWARTZ, Stuart. Op.cit.p.264.
[6] GORENDER, Jacob. Op.cit.p.46-47.
[7] SLENES, Robert. FARIA, Sheila de Castro. Família escrava e trabalho. Revista Tempo, volume 3, nº6, dezembro de 1998.p.2.
[8] Idem,p.3.
[9] Compadrio seria a relação desenvolvida entre compadres. Compadre seria padrinho em relação aos pais do afilhado.
[10] SCHWARTZ, Stuart, Op.cit.p.266.
[11] FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1997, p.173-174.
[12] ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. Uma história do negro no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006, p.97.
[13] Idem,p.97.
[14]Ibdem. Op.cit.p.97.
[15]COSTA, Iraci Del Nero da & LUNA, Francisco Vidal. “Vila Rica”: nota sobre casamentos de escravos (1727-1826). Revista “África”, São Paulo, Centro de Estudos Africanos (USP), 1981, p. 105-109.
[16] COSTA, Iraci Del Nero da & GUTIÉRREZ, Horácio. Nota sobre casamentos
de escravos em São Paulo e no Paraná (1830). História: Questões e
Debates. Curitiba, APAH, 5(9): 1984. P. 314. Apud: FERNANDES, Edson. Família escrava numa boca do sertão. Lenções, 1860-1888. Revista de História Regional, 2003, p.9.
[17] METCALF, Alida C. Vida familiar dos escravos em São Paulo no século
dezoito: o caso de Santana de Parnaíba. Estudos Econômicos. V.17,
n.2, p. 229-243, maio/ago., 1987. Apud: FERNANDES, Edson. Op.cit, p. 18-19.
[18] FERNANDES, Edson. Família escrava numa boca do sertão. Lenções, 1860-1888. Revista de História Regional, 2003, p.9.
[19] SLENES, Robert, FARIA, Sheila de Castro. Op.cit.p.3.
[20] SLENES, Robert. Entrevista a Haroldo Ceravolo Sereza para a Folha de São Paulo- ilustrada- 12 de fevereiro de 2000.
[21] Idem.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Fausta e as Ações de Liberdade



Recorrer à justiça para conseguir ou defender direitos é algo muito comum nos dias atuais. Pessoas de todas as classes sociais o fazem a cada dia em maior número. “Tudo” se resolve judicialmente hoje. Para nós pessoas livres do século XXI isto não é mais uma novidade, mas na segunda metade do século XIX foi um recurso que pode dar liberdade a muitas pessoas que estavam submetidas à infâmia do cativeiro. Estudos realizados nas últimas décadas tem revelado um bom número de processos judiciais em que escravizados foram a justiça para conseguir sua liberdade. Muitos cobravam alguma antiga promessa de seu senhor. Outros já possuíam o dinheiro para compra da alforria e outros queriam apenas provar que nasceram livres nestas terras e que foram escravizados “ilegalmente”.
As últimas décadas do século XIX tem muito a nos dizer sobre estes processos. É nesta época que escravos puderam passar a utilizar seus ganhos acumulados e direcioná-los para a compra de sua liberdade. Pode parecer estranho para alguns imaginarem escravos com dinheiro, mas isto ocorria. Os escravos tinham dias de folga durante a semana, que invariavelmente era o domingo, por ser dia dedicado a religiosidade cristã. Mas muitos conseguiram além deste dia santo, outro dia da semana que dedicavam para trabalhar em proveito próprio e de forma remunerada para outros senhores. Alguns escravos tinham a função de escravos de ganho, que trabalhavam geralmente na zona urbana vendendo ou praticando algum trabalho braçal remunerado. Parte desta renda era entregue a seu senhor, que muitas vezes vivia apenas destes ganhos.
Consultando arquivos de ações de liberdade ocorridas em Mariana, cidade de Minas Gerais de fins do século XIX a economista Maria Heloísa Teixeira relata que vários escravos acionaram a justiça se baseando na lei de 7 de novembro de 1831 que instituiu pela primeira vez no Brasil a proibição do tráfico de escravos vindos de fora do país,  transformando assim todos os africanos que desembarcassem nestas terras após esta data em pessoas livres.  Maria Heloísa relata também que a partir de 1871 há uma maior intensificação do número de processos, por ser este o ano em que a justiça permitirá que escravos comprem sua liberdade através do pecúlio acumulado.  A autora acredita que os escravos perceberam que os alicerces do regime estavam ruindo e passaram a lutar com mais intensidade por sua liberdade através dos meios jurídicos. “Tais processos, comumente chamados de ações de liberdade, revela que, embora na manumissão de um escravo predominasse a vontade senhorial, havia também a possibilidade de o cativo ser o agente da própria liberdade”. (Teixeira, 2012).
Como escravos não possuíam direitos e eram considerados coisas, não era possível que os mesmos acionassem a justiça diretamente para conseguir algum benefício. Isto ocorria através de uma pessoa livre e idônea que se dispusesse a fazê-lo.  Este período de fim de século e da conquista do direito da compra da liberdade coincide justamente com o desenvolvimento do abolicionismo, fato este que irá fazer com que escravos encontrem muitas pessoas livres e com boas posições sociais que lhes ajudarão com tais ações. A Historiadora da UFRJ Adriana Pereira de Campos cita que as redes sociais eram importantes instrumentos para os escravizados alcançarem determinados benefícios como melhores condições de vida e a tão sonhada liberdade.

Além da dimensão legal, a alforria e o pecúlio partilhavam um aspecto importante como instrumento de negociação entre senhores e escravos. Para conseguir a liberdade, o cativo precisava corresponder à lealdade esperada por seu senhor. Nos registros de noventa e duas cartas de liberdade, abrigadas no Cartório do Segundo Ofício de Vitória/ES, encontramos o recurso frequente ao instituto do pecúlio. Em tais documentos, pode-se constatar que o escravo, para obter as somas necessárias à compra de sua liberdade, mantinha-se estreitamente ligado aos seus senhores. Por meio dessa aproximação, o cativo lograva executar tarefas envolvendo rendimentos monetários. Outras vezes, o escravo buscava um homem livre, de suas relações, que pudesse lhe adiantar o valor requerido, colocando-se, em troca, sob a proteção dessa pessoa”.

Ao fazer uma pesquisa para a conclusão de um curso de pós-graduação em Cultura Afro Brasileira, deparei-me com uma ação de liberdade nos arquivos da Secretaria de Patrimônio Histórico de Macaé. Ele me foi “apresentado” Pela Historiadora Conceição Franco, responsável por inúmeras pesquisas referentes à História do município.  O documento datado de 1881 era uma ação da escrava Fausta, 30 anos que tentou comprar sua liberdade e a de seu filho no cartório de segundo ofício de Macaé. Fausta pertencia ao Visconde de Mauá, personagem muito conhecido da História do Brasil que teve importante participação no desenvolvimento industrial brasileiro na segunda metade do século XIX.
Segundo a Doutora em História Ana Lúcia Nunes Penha, Fausta tentou comprar sua liberdade se utilizando de uma quantia de 700.000 réis, valor este considerado elevado para um escravo (Penha, 2008). Fausta teria um acordo com o Barão em que assim que ela conseguisse o valor poderia comprar sua liberdade. Fausta, assim como muitos outros escravizados, teria conseguido dinheiro trabalhando remuneradamente em seus dias de folga. 
O que Fausta não esperava era que o Visconde iria falir. Por conta de suas dívidas, o Visconde perdeu muitas de suas propriedades e entre elas a fazenda onde a escrava vivia na região serrana de Macaé.  A fazenda Atalaia passou para as mãos do Banco do Brasil e em seguida para novos donos, Rodrigo Ferreira Borges e Macedo Sobrinho, que seriam na verdade procuradores do Banco do Brasil com poderes para negociar todos os escravos da fazenda. Toda essa reviravolta acabou dificultando a compra da liberdade por parte de Fausta, mas que mesmo assim teria alcançado a liberdade, através da compra no ano de 1884, depois de despacho a seu favor.
Não sabemos do paradeiro de Fausta e seu filho após conseguir a sua liberdade, e nem se permaneceu vivendo livre após este acontecimento. Existiram muitos outros casos parecidos em que pessoas já livres do cativeiro tiveram o infortúnio de serem sequestrados e recolocados na escravidão. Quando isso acontecia, novamente o recurso às ações de liberdade eram os instrumentos utilizados para conseguirem provar que eram de fato pessoas livres.
As pesquisadoras da Biblioteca Nacional Maria Morado e Mariane Silva Duarte apresentam na edição de julho de 2014 da revista da Biblioteca uma carta de uma mãe que lutou para libertar seus filhos escravizados ilegalmente. Maria Nunes dos Reis relatou em uma carta datada do ano de 1836 que seus três filhos haviam sido levados ao cativeiro de forma ilegal, já que sua filha, Maria Madalena fora nascida de ventre livre. Pedro, outro filho teria sido libertado por sua antiga senhora, enquanto que seu terceiro filho, Paulo, também nascera de ventre livre. De acordo com a Constituição de 1824 era proibido submeter uma pessoa livre ao cativeiro, fato este que era considerado crime e punido com pena de prisão para quem desobedecesse a lei (Dias, 2010). Mas para uma pessoa negra naquela época seria muito difícil conseguir provar que não era de fato um escravo.
Maria Nunes teria sofrido um verdadeiro calvário e enfrentado interesses poderosos para reaver seus filhos, já que eles estavam sob a posse de autoridades poderosas da província de Goiás. A luta de Maria durou muitos anos e infelizmente não sabemos o que ocorreu com ela e seus três filhos, mas é possível imaginar quanto sofrimento não deve ter passado esta mãe na luta pela liberdade de seus filhos.
O acesso à justiça passou a ser uma possibilidade para aqueles que sofreram inúmeras perversidades ao longo de séculos de escravidão e que viram na referida lei uma chance de diminuir seus sofrimentos. Maria e Fausta são apenas dois exemplos entre milhões de pessoas que sofreram de diferentes formas as agruras do cativeiro.
As lutas permaneceram pelo restante daquele século de diferentes formas. A escravidão já estava com seus dias contados, mesmo que isto representasse poucas melhorias nas vidas daquelas pessoas. A liberdade abria possibilidades principalmente de locomoção, mas ainda não representava condições dignas de trabalho e de vida para negros e afrodescendentes recém-libertados. 
O século XX será de constantes lutas em busca de uma verdadeira cidadania para estas pessoas que não receberam direitos de fato, mas sim a exclusão social agora mascarada pela marginalização e o preconceito de uma sociedade que se esforçou para tentar apagar seu passado escravocrata passando agora a não mais utilizar o negro em trabalhos remunerados, mas em buscar “embranquecer” sua sociedade com a imigração europeia.
 Em muitos lugares os sofrimentos de Maria e Fausta permaneceram por muitas décadas após a abolição e os gritos agora se não mais clamam por liberdade, ecoam hoje em busca de conquistas básicas necessárias a vida de todo e qualquer ser humano.



Bibliografia.

Campos, Adriana Pereira. Escravidão e liberdade nas barras dos tribunais. Artigo acessado em 17 de setembro de 2014 na página http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao09/materia03/texto03.pdf.

Dias, Silvania de Oliveira. As ações de liberdade de escravos na justiça de Mariana. 1850-1888. Dissertação de Mestrado, página 12. Ouro Preto, 2010.

Morado, Maria de Fátima da silva. Duarte, Mariane Silva. Mãe coragem. Revista de História da Biblioteca Nacional. Página 90-91, julho de 2014, número 106.

Penha, Ana Lúcia Nunes. Todas as cores na educação. Escravidão e abolição no município de Macaé. Rio de Janeiro, Editora Quartet. Página 142-143.
Teixeira, Heloisa Maria. Injusto cativeiro: a luta dos africanos pela liberdade (Mariana, segunda metade do século XIX). XVIII Encontro regional (ANPUH-MG). Acessado em 17 de setembro de 2014 na página http://www.encontro2012.mg.anpuh.org/resources/anais/24/1340764056_ARQUIVO_Injustocativeiro-ANPUH2012.pdf.







sábado, 23 de agosto de 2014

Carukango, o príncipe Quilombola de Macaé.

         Ainda há muitos aspectos sobre a escravidão e o cotidiano do período escravocrata brasileiro que está sendo reescrito. Teria dito certo Historiador que o "passado está em constante movimento". Pode-se dizer que isto é a pura verdade. Há uma bibliografia muito extensa sobre nosso passado e sobre os encontros e desencontros destas pessoas que durante mais de três séculos viveram sob o jugo do cativeiro. Infelizmente muito do que sabemos provém das fontes escritas pelo homem branco, ou seja, o dominador. 
 Estudos produzidos principalmente a partir da década de 1970, como os de Ciro Cardoso, Kátia Matoso, Flávio Gomes, Robert Slenes e Sidney Chalhoub têm mostrado um universo muito mais complexo que aquele descrito e estudado por vários Historiadores anteriores. Sheila de Castro Faria em “A Colônia em movimento” ao analisar a história das famílias, a dinâmica de áreas rurais e a expansão das atividades econômicas, relata que nestes estudos os negros vêm surgindo como agentes históricos, mesmo que com certo desprestígio.
 Em recentes pesquisas, dentre estas as de Chalhoub, emerge uma nova visão do comportamento escravo e da rebeldia e posicionamento dos mesmos diante das adversidades. De acordo com Flávio Gomes passa a haver uma contestação das concepções que viam as relações senhor/escravo marcadas tão somente por uma visão paternalista da escravidão. Há uma maior ênfase na descrição dos quilombos e seus líderes de caráter revolucionário com maior consciência de suas ações, além da análise de outras formas de resistência, como determinadas negociações buscando melhorias em sua vida cotidiana, que até então foram descritas como passivas e de caráter histórico desmerecido. Estes estudos têm demonstrado que estas resistências devem ser entendidas não como “passivas”, mas sim como “uma das faces das complexas lutas vivenciadas pelos escravos e que tinha como contraponto a reelaboração permanente das relações com seus senhores”.[2]
O que se pode entender destas formas de resistência, é que através delas, os escravos buscavam se reconstituir como pessoas, alterando, modificando e adequando a dominação senhorial na tentativa de reconstruírem suas vidas. Trata-se de novos meios para enfrentar o sistema, que não se limitou a insurgências e fugas. Gomes relata, por exemplo, que negros escravos no Caribe estavam muito bem informados a respeito das discussões no parlamento inglês, “e tentavam na medida do possível, tirar proveito de tal situação, a partir de suas próprias lógicas”.[3]
Outra idéia difundida e muito questionada, e que tem na obra de Gilberto Freire “Casagrande e senzala” sua principal argumentação, é a da idéia de paternalismo e benignidade da escravidão, com uma relação muito próxima, e muitas vezes promíscua entre senhor/escravo. Tal visão tem sido alvo de inúmeras críticas nos anos que sucederam a sua publicação (1930), provocando vários debates. As pesquisas dos autores citados anteriormente não demonstram tal paternalismo. Estas pesquisas buscam dar voz a estas pessoas escravizadas, apreendendo discursos e argumentos para compreender sua percepção diante do cativeiro. Chalhoub acrescenta que

o mito do caráter benevolente ou não violento da escravidão no Brasil já foi sobejamente demolido pela produção acadêmica das décadas de 1960 e 1970 e, no momento em que escrevo, não vejo no horizonte ninguém minimamente competente no assunto que queira argumentar o contrário”. 


         
Sobre a formação dos Quilombos também há uma enorme gama de livros e artigos publicados que nos apresentam inúmeras facetas desta forma de rebeldia. A mais conhecida destas formas de rebeldia, e que realmente se destacou fora de fato à fuga e a conseqüente formação dos quilombos. Isto ocorreu desde a chegada dos primeiros africanos ao Brasil. Os quilombos alarmavam e preocupavam as autoridades desde meados do século XVI, tanto que propiciou no ano de 1699, a isenção de punição para aquele que matasse um escravo fugitivo no momento de sua captura. No ano de 1701 os famosos caçadores de negros fujões, conhecidos entre outros nomes, como capitães do mato, recebem concessão que será regulamentada em 1724, o prêmio de seis oitavas de ouro por cabeça de negro aquilombado morto em combate. Apesar das perseguições e da violência a que eram submetidos os negros recapturados, os quilombos não deixaram de se reproduzir.
De acordo com Lima, os negros apesar de buscarem lugares de difícil acesso para se esconderem, não procuravam se afastar tanto assim, por necessitarem do contato com povoações para a aquisição de gêneros que não pudessem produzir. Os mesmos se utilizavam tanto de roubos quanto de negociações para esta aquisição. Quando se faz alguma referência a quilombos, a primeira coisa que nos vem à cabeça é Palmares e seu conhecido líder Zumbi. Este foi o maior de todos, tanto no que diz respeito à duração quanto à extensão e número de habitantes. Ainda segundo Lima, o mesmo já existia por volta de 1602-1608 e sua queda só se dará em 1694.De acordo com Moura, “Palmares foi à maior manifestação de rebeldia contra o escravismo na América Latina e durante seu período de duração desestabilizou regionalmente o sistema.  Diferentemente da opinião de Moura, Lima diz que os quilombos não ameaçavam o sistema, mas ocasionavam certo desgaste ao seu funcionamento causando-lhe sérios prejuízos materiais; não tanto por suas investidas contra os povoados ou por recursos desviados, mas pelo grande número de negros que mantinham afastados do processo produtivo.
 O que estas pessoas buscavam era de fato uma reordenação no sistema ao qual estavam inseridas de forma extremamente desfavorável. Por não se conformarem com sua situação, buscaram meios de mudanças no rumo de suas vidas. Sabe-se que a condução do destino de uma pessoa escravizada é anulada ou reduzida ao limite, mas mesmo assim, em muitos momentos os mesmos conseguiram obter mudanças significativas em suas relações, e ajudar, mesmo que lentamente, a desestruturação do sistema escravocrata. Thornton nos revela que em condições difíceis,

sempre há pessoas, quer exploradas, quer privilegiadas, que não vêem como mudar ou melhorar sua sorte seguindo as regras do sistema. Essas pessoas procuram ir além das circunstâncias que a escravidão lhes impõe e exigem mais do que seus donos ou governantes estão dispostos a dar lhes por livre vontade. Esses descontentes eram os resistentes, os rebeldes ou os fugitivos. Cada um a seu modo e de acordo com seus próprios meios, procurava alterar o sistema e suas regras.



           Neste contexto é que talvez se enquadre o quilombo de Carukango. Este quilombo teria sido um dos maiores da História do Rio de Janeiro, e quem sabe o maior. Carukango teria sido um escravo proveniente da atual região de Moçambique e teria sido lá em sua tribo membro de uma família real. Isto seria um dos motivos que o levariam a se revoltar constantemente com o cativeiro sendo visto como um escravo arredio e problemático. Carukango teria pertencido ao capitão Antônio Pinto, fazendeiro da região de Nossa Senhora das Neves, região bastante extensa a época e que ficava no município de Macaé, e que hoje se encontra também dividido com o município vizinho de Conceição de Macabu.
Segundo o jornalista Hélvio Gomes Cordeiro, nesta fazenda o escravo Carukango teria recebido a denominação de Dodô Moçambique, e que segundo o jornalista, não foi aceito por Carukango.  Hélvio também relata que Karukango teria vivido na fazenda por aproximadamente oito anos e teria, por conta de sua rebeldia, sofrido constantes castigos que acabaram por deixá-lo com uma deformação na perna esquerda acabando por ficar manco.  Carukango seria uma pessoa de personalidade forte, que acabava por incentivar comportamentos arredios para com seus senhores por parte de outros escravizados. Tinha fama de feiticeiro por manter firme suas crenças religiosas e seus costumes que vieram com ele de sua terra mãe África. Carukango seria o tipo de escravizado que se enquadraria na definição de Thornton como o que almejava a queda definitiva do sistema de escravidão colonial e a substituição do governo da classe dominante por um comandado pelos antigos escravos. 
         Carukango teria fugido pelo menos duas vezes antes de sua fuga definitiva e da formação de seu quilombo na serra do deitado. A fuga definitiva teria ocorrido no ano de 1822. No dia da fuga Carukango teria matado o capataz Corisco, que seria o responsável por muitas das surras que teria tomado durante os mais de oito anos em que vivera na fazenda do Capitão Pinto. De acordo com Hélvio Gomes, na noite da fuga os fugitivos arrombaram o armazém da fazenda levando tudo que poderiam e lhes seria necessário. Teriam também degolado alguns escravos velhos que não tinham condições de fugir para que estes não os delatassem. Os agora livres seguiram para a já citada serra do deitado e lá teriam se estabelecido passando a cultivar plantações variadas que iriam lhes servir de alimento.
Do quilombo estes homens saiam para saquear propriedades trazendo consigo escravizados por vontade própria e em alguns casos a força, fato que ocorria com mais frequência em relação as mulheres. 
        Ainda segundo Hélvio Gomes, Carukango como líder quilombola exigia  daqueles que passassem a acompanhá-lo, que  a partir daquele momento deixassem de lado suas crenças cristãs e a linguagem do dominador, passando a usar a "linguagem da mãe África".  Este último ponto é questionável, visto que os escravos provenientes do continente africano vinham de lugares diferentes, falavam línguas muito difusas tendo em vista a imensidão de tribos existentes em Angola e Moçambique apenas. 
       Os constantes ataques as fazendas e os consequentes prejuízos dados aos fazendeiros locais fez com que os mesmos começassem a tomar medidas para conter os problemas causados e buscar encontrar e destruir o quilombo de Carukango. Hélvio Gomes nos conta que o capitão Chico Domingues e Antonio Pinto teriam se organizado para destruir o quilombo pedindo auxílio ao Coronel Antão de Vasconcellos que viria do Espírito Santo para esta missão. A milícia do Coronel Vasconcellos se uniu as forças que já se encontravam em Macaé a sua espera. Seguiram em direção a serra do deitado e teriam disputado algumas batalhas antes do confronto final. Os quilombolas tinham a vantagem de conhecerem o local. A captura de um membro do quilombo  fez com que este revelasse o local exato do quilombo. Em seguida o Coronel colocou em prática um plano em que os acessos ao quilombo foram bloqueados deixando os seus membros em uma situação crítica. Nas palavras de Hélvio Gomes, os milicianos ao chegarem ao topo do platô teriam encontrado "diversas plantações que cobriam a terra tendo ao centro uma enorme casa de pau a pique com telhado de palha. Esta que aparentava ser a casa principal, escondia, na realidade, a boca da gruta, que era onde viviam os negros".
       Com a chegada das tropas do coronel houve uma sangrenta batalhaHaviam em torno de 200 quilombolas entre homens, mulheres e crianças armados com garruchas, espingardas, foices e facões. O combate teria sido extremamente desigual  visto que os homens do coronel possuíam muito mais armas e entre estas alguns canhões de artilharia pesada. Grande parte dos quilombolas teria morrido por conta dos ataques. Alguns teriam fugido a mando de Carukango que acreditava ainda poder recriar o quilombo em outro lugar. O fim de Carukango e de seu quilombo tem algo de lendário. A história que é contada e que conheço a partir de conversas com a Historiadora Conceição Franco, uma grande estudiosa deste assunto, é de que Carukango teria saído vestindo um manto branco com um crucifixo ao peito, talvez para sensibilizar os cristãos ali presentes. De repente ele sacaria duas garruchas e atiraria contra o filho de Antônio Pinto matando-o na hora. 
       Os milicianos revidaram e Carukango seria morto por muitos tiros tendo seu corpo em seguida sido totalmente destroçado. As casas existentes foram destruídas, as plantações incendiadas e os corpos jogados em um penhasco ali existente. Durante muitos anos esta História teria poucos fundamentos para ser considerada verídica, pois havia apenas os relatos do neto de Antão de Vasconcellos como fonte, e que dissera ter ouvido de seu avô quando criança os relatos sobre o  ocorrido. Mas quase 200 anos depois do acontecido foi encontrado pela Historiadora Conceição Franco na Igreja do Trapiche documentos eclesiásticos que confirmariam toda a História que Antão de Vasconcellos contara a seu neto, e que este publicara em livro. Pesquisadores como Hélvio Gomes, Conceição Franco e Marcelo Abreu buscam agora quem sabe, encontrar vestígios e artefatos do antigo Quilombo que identifiquem sua exata localização. 





 Cordeiro, Hélvio Gomes. Carukango - O príncipe dos escravos. Editora Grafimar, Campos dos Goitacases, 2009. 
. THORTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico, 1400 – 1800/Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.


 LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra e abolicionismo. -Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.

 MOURA, Clóvis. Quilombos. Resistência ao escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1993, pp.38.



 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995,pp.17-19.

 CHALHOUB, Sidney. . Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990

 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.pp.290.