sábado, 23 de agosto de 2014

Carukango, o príncipe Quilombola de Macaé.

         Ainda há muitos aspectos sobre a escravidão e o cotidiano do período escravocrata brasileiro que está sendo reescrito. Teria dito certo Historiador que o "passado está em constante movimento". Pode-se dizer que isto é a pura verdade. Há uma bibliografia muito extensa sobre nosso passado e sobre os encontros e desencontros destas pessoas que durante mais de três séculos viveram sob o jugo do cativeiro. Infelizmente muito do que sabemos provém das fontes escritas pelo homem branco, ou seja, o dominador. 
 Estudos produzidos principalmente a partir da década de 1970, como os de Ciro Cardoso, Kátia Matoso, Flávio Gomes, Robert Slenes e Sidney Chalhoub têm mostrado um universo muito mais complexo que aquele descrito e estudado por vários Historiadores anteriores. Sheila de Castro Faria em “A Colônia em movimento” ao analisar a história das famílias, a dinâmica de áreas rurais e a expansão das atividades econômicas, relata que nestes estudos os negros vêm surgindo como agentes históricos, mesmo que com certo desprestígio.
 Em recentes pesquisas, dentre estas as de Chalhoub, emerge uma nova visão do comportamento escravo e da rebeldia e posicionamento dos mesmos diante das adversidades. De acordo com Flávio Gomes passa a haver uma contestação das concepções que viam as relações senhor/escravo marcadas tão somente por uma visão paternalista da escravidão. Há uma maior ênfase na descrição dos quilombos e seus líderes de caráter revolucionário com maior consciência de suas ações, além da análise de outras formas de resistência, como determinadas negociações buscando melhorias em sua vida cotidiana, que até então foram descritas como passivas e de caráter histórico desmerecido. Estes estudos têm demonstrado que estas resistências devem ser entendidas não como “passivas”, mas sim como “uma das faces das complexas lutas vivenciadas pelos escravos e que tinha como contraponto a reelaboração permanente das relações com seus senhores”.[2]
O que se pode entender destas formas de resistência, é que através delas, os escravos buscavam se reconstituir como pessoas, alterando, modificando e adequando a dominação senhorial na tentativa de reconstruírem suas vidas. Trata-se de novos meios para enfrentar o sistema, que não se limitou a insurgências e fugas. Gomes relata, por exemplo, que negros escravos no Caribe estavam muito bem informados a respeito das discussões no parlamento inglês, “e tentavam na medida do possível, tirar proveito de tal situação, a partir de suas próprias lógicas”.[3]
Outra idéia difundida e muito questionada, e que tem na obra de Gilberto Freire “Casagrande e senzala” sua principal argumentação, é a da idéia de paternalismo e benignidade da escravidão, com uma relação muito próxima, e muitas vezes promíscua entre senhor/escravo. Tal visão tem sido alvo de inúmeras críticas nos anos que sucederam a sua publicação (1930), provocando vários debates. As pesquisas dos autores citados anteriormente não demonstram tal paternalismo. Estas pesquisas buscam dar voz a estas pessoas escravizadas, apreendendo discursos e argumentos para compreender sua percepção diante do cativeiro. Chalhoub acrescenta que

o mito do caráter benevolente ou não violento da escravidão no Brasil já foi sobejamente demolido pela produção acadêmica das décadas de 1960 e 1970 e, no momento em que escrevo, não vejo no horizonte ninguém minimamente competente no assunto que queira argumentar o contrário”. 


         
Sobre a formação dos Quilombos também há uma enorme gama de livros e artigos publicados que nos apresentam inúmeras facetas desta forma de rebeldia. A mais conhecida destas formas de rebeldia, e que realmente se destacou fora de fato à fuga e a conseqüente formação dos quilombos. Isto ocorreu desde a chegada dos primeiros africanos ao Brasil. Os quilombos alarmavam e preocupavam as autoridades desde meados do século XVI, tanto que propiciou no ano de 1699, a isenção de punição para aquele que matasse um escravo fugitivo no momento de sua captura. No ano de 1701 os famosos caçadores de negros fujões, conhecidos entre outros nomes, como capitães do mato, recebem concessão que será regulamentada em 1724, o prêmio de seis oitavas de ouro por cabeça de negro aquilombado morto em combate. Apesar das perseguições e da violência a que eram submetidos os negros recapturados, os quilombos não deixaram de se reproduzir.
De acordo com Lima, os negros apesar de buscarem lugares de difícil acesso para se esconderem, não procuravam se afastar tanto assim, por necessitarem do contato com povoações para a aquisição de gêneros que não pudessem produzir. Os mesmos se utilizavam tanto de roubos quanto de negociações para esta aquisição. Quando se faz alguma referência a quilombos, a primeira coisa que nos vem à cabeça é Palmares e seu conhecido líder Zumbi. Este foi o maior de todos, tanto no que diz respeito à duração quanto à extensão e número de habitantes. Ainda segundo Lima, o mesmo já existia por volta de 1602-1608 e sua queda só se dará em 1694.De acordo com Moura, “Palmares foi à maior manifestação de rebeldia contra o escravismo na América Latina e durante seu período de duração desestabilizou regionalmente o sistema.  Diferentemente da opinião de Moura, Lima diz que os quilombos não ameaçavam o sistema, mas ocasionavam certo desgaste ao seu funcionamento causando-lhe sérios prejuízos materiais; não tanto por suas investidas contra os povoados ou por recursos desviados, mas pelo grande número de negros que mantinham afastados do processo produtivo.
 O que estas pessoas buscavam era de fato uma reordenação no sistema ao qual estavam inseridas de forma extremamente desfavorável. Por não se conformarem com sua situação, buscaram meios de mudanças no rumo de suas vidas. Sabe-se que a condução do destino de uma pessoa escravizada é anulada ou reduzida ao limite, mas mesmo assim, em muitos momentos os mesmos conseguiram obter mudanças significativas em suas relações, e ajudar, mesmo que lentamente, a desestruturação do sistema escravocrata. Thornton nos revela que em condições difíceis,

sempre há pessoas, quer exploradas, quer privilegiadas, que não vêem como mudar ou melhorar sua sorte seguindo as regras do sistema. Essas pessoas procuram ir além das circunstâncias que a escravidão lhes impõe e exigem mais do que seus donos ou governantes estão dispostos a dar lhes por livre vontade. Esses descontentes eram os resistentes, os rebeldes ou os fugitivos. Cada um a seu modo e de acordo com seus próprios meios, procurava alterar o sistema e suas regras.



           Neste contexto é que talvez se enquadre o quilombo de Carukango. Este quilombo teria sido um dos maiores da História do Rio de Janeiro, e quem sabe o maior. Carukango teria sido um escravo proveniente da atual região de Moçambique e teria sido lá em sua tribo membro de uma família real. Isto seria um dos motivos que o levariam a se revoltar constantemente com o cativeiro sendo visto como um escravo arredio e problemático. Carukango teria pertencido ao capitão Antônio Pinto, fazendeiro da região de Nossa Senhora das Neves, região bastante extensa a época e que ficava no município de Macaé, e que hoje se encontra também dividido com o município vizinho de Conceição de Macabu.
Segundo o jornalista Hélvio Gomes Cordeiro, nesta fazenda o escravo Carukango teria recebido a denominação de Dodô Moçambique, e que segundo o jornalista, não foi aceito por Carukango.  Hélvio também relata que Karukango teria vivido na fazenda por aproximadamente oito anos e teria, por conta de sua rebeldia, sofrido constantes castigos que acabaram por deixá-lo com uma deformação na perna esquerda acabando por ficar manco.  Carukango seria uma pessoa de personalidade forte, que acabava por incentivar comportamentos arredios para com seus senhores por parte de outros escravizados. Tinha fama de feiticeiro por manter firme suas crenças religiosas e seus costumes que vieram com ele de sua terra mãe África. Carukango seria o tipo de escravizado que se enquadraria na definição de Thornton como o que almejava a queda definitiva do sistema de escravidão colonial e a substituição do governo da classe dominante por um comandado pelos antigos escravos. 
         Carukango teria fugido pelo menos duas vezes antes de sua fuga definitiva e da formação de seu quilombo na serra do deitado. A fuga definitiva teria ocorrido no ano de 1822. No dia da fuga Carukango teria matado o capataz Corisco, que seria o responsável por muitas das surras que teria tomado durante os mais de oito anos em que vivera na fazenda do Capitão Pinto. De acordo com Hélvio Gomes, na noite da fuga os fugitivos arrombaram o armazém da fazenda levando tudo que poderiam e lhes seria necessário. Teriam também degolado alguns escravos velhos que não tinham condições de fugir para que estes não os delatassem. Os agora livres seguiram para a já citada serra do deitado e lá teriam se estabelecido passando a cultivar plantações variadas que iriam lhes servir de alimento.
Do quilombo estes homens saiam para saquear propriedades trazendo consigo escravizados por vontade própria e em alguns casos a força, fato que ocorria com mais frequência em relação as mulheres. 
        Ainda segundo Hélvio Gomes, Carukango como líder quilombola exigia  daqueles que passassem a acompanhá-lo, que  a partir daquele momento deixassem de lado suas crenças cristãs e a linguagem do dominador, passando a usar a "linguagem da mãe África".  Este último ponto é questionável, visto que os escravos provenientes do continente africano vinham de lugares diferentes, falavam línguas muito difusas tendo em vista a imensidão de tribos existentes em Angola e Moçambique apenas. 
       Os constantes ataques as fazendas e os consequentes prejuízos dados aos fazendeiros locais fez com que os mesmos começassem a tomar medidas para conter os problemas causados e buscar encontrar e destruir o quilombo de Carukango. Hélvio Gomes nos conta que o capitão Chico Domingues e Antonio Pinto teriam se organizado para destruir o quilombo pedindo auxílio ao Coronel Antão de Vasconcellos que viria do Espírito Santo para esta missão. A milícia do Coronel Vasconcellos se uniu as forças que já se encontravam em Macaé a sua espera. Seguiram em direção a serra do deitado e teriam disputado algumas batalhas antes do confronto final. Os quilombolas tinham a vantagem de conhecerem o local. A captura de um membro do quilombo  fez com que este revelasse o local exato do quilombo. Em seguida o Coronel colocou em prática um plano em que os acessos ao quilombo foram bloqueados deixando os seus membros em uma situação crítica. Nas palavras de Hélvio Gomes, os milicianos ao chegarem ao topo do platô teriam encontrado "diversas plantações que cobriam a terra tendo ao centro uma enorme casa de pau a pique com telhado de palha. Esta que aparentava ser a casa principal, escondia, na realidade, a boca da gruta, que era onde viviam os negros".
       Com a chegada das tropas do coronel houve uma sangrenta batalhaHaviam em torno de 200 quilombolas entre homens, mulheres e crianças armados com garruchas, espingardas, foices e facões. O combate teria sido extremamente desigual  visto que os homens do coronel possuíam muito mais armas e entre estas alguns canhões de artilharia pesada. Grande parte dos quilombolas teria morrido por conta dos ataques. Alguns teriam fugido a mando de Carukango que acreditava ainda poder recriar o quilombo em outro lugar. O fim de Carukango e de seu quilombo tem algo de lendário. A história que é contada e que conheço a partir de conversas com a Historiadora Conceição Franco, uma grande estudiosa deste assunto, é de que Carukango teria saído vestindo um manto branco com um crucifixo ao peito, talvez para sensibilizar os cristãos ali presentes. De repente ele sacaria duas garruchas e atiraria contra o filho de Antônio Pinto matando-o na hora. 
       Os milicianos revidaram e Carukango seria morto por muitos tiros tendo seu corpo em seguida sido totalmente destroçado. As casas existentes foram destruídas, as plantações incendiadas e os corpos jogados em um penhasco ali existente. Durante muitos anos esta História teria poucos fundamentos para ser considerada verídica, pois havia apenas os relatos do neto de Antão de Vasconcellos como fonte, e que dissera ter ouvido de seu avô quando criança os relatos sobre o  ocorrido. Mas quase 200 anos depois do acontecido foi encontrado pela Historiadora Conceição Franco na Igreja do Trapiche documentos eclesiásticos que confirmariam toda a História que Antão de Vasconcellos contara a seu neto, e que este publicara em livro. Pesquisadores como Hélvio Gomes, Conceição Franco e Marcelo Abreu buscam agora quem sabe, encontrar vestígios e artefatos do antigo Quilombo que identifiquem sua exata localização. 





 Cordeiro, Hélvio Gomes. Carukango - O príncipe dos escravos. Editora Grafimar, Campos dos Goitacases, 2009. 
. THORTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico, 1400 – 1800/Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.


 LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra e abolicionismo. -Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.

 MOURA, Clóvis. Quilombos. Resistência ao escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1993, pp.38.



 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995,pp.17-19.

 CHALHOUB, Sidney. . Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990

 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.pp.290.