terça-feira, 24 de setembro de 2013

MORTE: A ÚNICA CERTEZA DA VIDA



Sobre a morte...






Não é feio o nosso jazigo; podia ser um pouco mais simples, - a inscrição e uma cruz, - mas o que está é bem feito. Achei-o novo demais, isso sim. Rita fá-lo lavar todos os meses, e isto impede que envelheça. Ora, eu creio que um velho túmulo dá melhor impressão do ofício, se tem as negruras do tempo, que tudo consome. O contrário parece sempre de véspera [...] a impressão que me dava o tal do cemitério é a que me deram sempre outros; tudo ali estava parado.”


O texto acima é um trecho do livro “Memorial de Aires” de Machado de Assis. São reflexões a respeito da morte, e que também não deixam de ser a respeito da vida. Mostra certo cuidado com o lugar dos mortos por parte dos vivos. Afinal, um dia será necessário que de nós alguém cuide. Com o passar dos tempos, em alguns lugares este cuidado com os mortos e com os antepassados acaba sendo deixado de lado, e aqueles outrora queridos, passam para as novas gerações como seres totalmente desconhecidos. São as gerações de antepassados que nem imaginamos ter “existido”. Mas eles se encontram lá, em algum cemitério ainda utilizado ou em desuso. E aqui em minha região há alguns que se encontram totalmente abandonados, e os seus “habitantes” há tempos que não sabem o que é receber a visita de seus entes queridos. 


 Cemitérios nem sempre foram considerados lugares sagrados. Na época do surgimento dos primeiros cemitérios, eles foram alvo de raiva e protestos. Muitos deles foram destruídos. Eles vinham para dificultar nosso acesso aos céus. Após a morte tínhamos de estar próximos de deus. Tínhamos de estar dentro de uma igreja.

 A morte sempre permeou o imaginário humano. É uma de nossas maiores indagações. A partir da disseminação do cristianismo e mais posteriormente com as novas “cruzadas” rumo a América para catequizar os povos indígenas, a fundação dos pequenos povoados e das vilas era na maioria dos casos sempre antecedida pela fundação de igrejas. Tratava-se de uma precaução com relação à morte. Morrer em um lugar distante e sem um padre para ouvir seu pedido de perdão no momento derradeiro e sem ter um lugar sagrado para ser sepultado, era algo que se encontrava fora de cogitação. E a proximidade do templo era algo que faria diferença, ao menos no imaginário da época. Quanto mais próximo da igreja, e se possível do altar, mais perto de Deus a pessoa se encontraria. Nas palavras do Historiador Gastão Cruls, “até então para os mortos de categoria havia sempre uma catacumba no claustro dos conventos ou uma campa no chão dos templos”. Era assim que eram feitos os sepultamentos. Dentro das naves da igreja. Ali mesmo, sob o piso. E o mau cheiro era insuportável e visto pelos defensores dos sepultamentos nas igrejas como uma prova de devoção (dos vivos por aguentar o mau cheiro nas missas!). De acordo com o Historiador Júlio Cesar Medeiros da Silva Pereira “os primeiros cristãos tinham o cos­tume de sepultar os seus mortos com ritos próprios e em lugares separados, aos quais chamavam de coemeterium (palavra latina derivada do grego koimètérium, forjada a partir do termo Koimâo, que tem por significado “eu faço dormir”). Nesses espaços, com o intuito de fugir da perseguição vigen­te, os cristãos se reuniam para celebrar o seu culto. Mais tarde, a construção de igrejas se daria ao lado das criptas e catacumbas e, a partir do século IV, primeiramente os reis e, mais tarde, todos os comuns, passariam a ser sepultados dentro das igrejas “.

Sepultamentos dentro de igrejas foram comuns até o século XIX em nosso país. Em visita que fiz a cidade de Ouro Preto, Foi possível visualizar várias indicações de pessoas sepultadas desta forma, no interior do templo, bem debaixo de nossos pés, sob os bancos de madeira ali posicionados. No passado não era costume haver bancos nas missas.  Encontrei em uma delas inclusive a inscrição a respeito do sepultamento de Francisco de Assis Lisboa, o Aleijadinho, grande escultor do período Barroco no Brasil, autor de várias obras de artes que se encontram nas cidades mineiras de Ouro Preto e Congonhas do Campo.

O sepultamento em igrejas começou a declinar a partir de 1825 quando os ventos da Europa e novas concepções de higiene passam a ser divulgadas. Há uma carta régia de 1801 do governo imperial que determina a proibição. De acordo com Felipe Bernardi Silveira, professor da UEMG, “as coisas estavam mudando na primeira metade do século XIX. A chegada da família real em 1808 certamente desencadeou uma série de alterações na rotina e nos costumes dos súditos”.[1] E entre estas mudanças estavam as que falavam de questões relacionadas à saúde pública. Médicos não viam com bons olhos missas que ocorriam sobre os sepultados. Ainda segundo Silveira, as teorias médicas da época apontavam para a presença de “gases nocivos no ar que se respirava, produzidos por matéria animal ou vegetal em decomposição”. Os relatos sobre o mau cheiro e sobre acontecimentos devido ao acúmulo de gases dentro dos templos acabaram por produzir histórias que hoje, poderíamos dizer, no mínimo curiosas. O Pesquisador Fabiano Vilaça relata um caso em que uma catacumba explodiu dentro de uma igreja “lançando os restos do cadáver que continha para o quintal das casas próximas”.[2]

Um excelente trabalho sobre a morte e seus rituais é o livro “A morte é uma festa” de João José Reis que discute em detalhes o acontecimento que ficou conhecido como “a cemiterada”, ocorrido em 25 de outubro de 1836 na Bahia. O fato se relacionava a mesma questão da proibição dos sepultamentos dentro das igrejas e do surgimento dos primeiros cemitérios que deixavam de estar nas mãos da igreja para agora ser assumido por particulares. Reis nos relata que a revolta começou com um chamado dos líderes religiosos locais. Centenas de pessoas marcharam para a praça do terreiro em Salvador depois de terem sido acordadas por inúmeras badaladas dos sinos das igrejas locais. De lá se deslocaram para a Câmara Municipal com o intuito de impedir que os mortos se distanciassem das igrejas. Revoltas como esta ocorreram em vários lugares e não apenas no Brasil. A forma como o corpo passou a ser tratado foi objeto de muitas revoltas. E não foram apenas as questões relacionadas ao local do sepultamento, mas também ao uso do cadáver.  José Reis afirma que “a partir do século XVIII, tornou-se comum o confisco pelo Estado, ou a usurpação ilegal por particulares dos cadáveres dos criminosos executados. Os cadáveres eram vendidos ou cedidos para uso de estudantes e professores de anatomia”.[3]

A questão é que os novos ventos da modernidade, dos ideais iluministas e da ética capitalista vinham produzindo mudanças que feriam muitos conceitos há tempos enraizados. A Ciência avançava e necessitava fazer experimentos. Um Caso misto de bizarrice com curiosidade foi o da revolta provocada após a morte de um menino na cidade de Manchester na Inglaterra no início do século XIX. Ocorreu que após a morte do menino os pais foram buscar o corpo no hospital. Chegando lá receberam um corpo que não possuía a cabeça. Foi colocado em seu lugar um tijolo! Resultado: revolta e a enfermaria totalmente destruída. A polícia encontrou posteriormente a cabeça no quarto do farmacêutico do hospital e devolveu a família que finalmente pode enterrar o menino da melhor forma possível. Corpos continuaram a ser enterrados em igrejas por pelo menos mais uns 30 anos em partes do país. A resistência foi grande, mas vencida com o tempo. O corpo, a igreja, deus, e o próprio homem passariam a ser vistos de forma diferente a partir deste século. Um século de profundas transformações sociais.  Foi de fato um século revolucionário.

 Enfim, há inúmeras questões que podem ser abordadas com relação à morte. Desde como proceder com aqueles que já se foram, com seus restos, até a gastar para que “fiquem bem” lá do outro lado. Tudo depende de como você o mundo ao seu redor. Mas isto já é uma outra história...










[1] Santo mau cheiro. Felipe Augusto de Bernardi Silveira. Revista de História da Biblioteca Nacional. Janeiro de 2011, p.44-45.


[2] Idem, p.47.


[3] Reis, João José. A morte é uma festa. SÃO Paulo, Companhia das Letras, 1991, p.83.