quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Quando Motta Coqueiro Me Assombrava...

Existem alguns acontecimentos de nossa infância que ficam guardados durante muitos anos em algum lugar de nossa memória que não sabemos exatamente onde é este lugar. Ouvimos histórias sobre monstros e seres fantasmagóricos horripilantes e que em nossa frágil e inocente visão de mundo, “existem” de fato. Chegamos a conhecer pessoas que contam “fatos” como se realmente os tivessem vivenciado. Em cidades do interior isso é mais comum ainda. Muitos são os que podem contar uma “real” experiência com alguma assombração. Já ouvi inúmeras. Eu mesmo tenho uma a contar de meus tempos de criança, e que depois de alguns anos de vida e uns poucos de estudo veio a se descortinar como a história do famoso caso de assassinato de uma família de camponeses e o posterior enforcamento de Manoel da Motta Coqueiro como mandante do crime. 
Segundo Armando Borges este foi o crime de maior repercussão ocorrido durante o período imperial brasileiro (Borges, p.134). Esta repercussão seria em virtude da grande brutalidade do crime, em que uma família inteira de camponeses teria sido morta, e também pelas inúmeras dúvidas suscitadas em relação à culpa de Motta Coqueiro, que teria desde o início negado ser o mandante do crime.
Em minha infância morando no tradicional bairro da Aroeira em Macaé, ouvia como de costume a época, várias histórias e lendas locais. Havia uma que particularmente me deixava com muito medo. Era a lenda do homem serpente enterrado em um túmulo amarrado com correntes no cemitério de Santana. Diziam que ele costumava forçar as paredes do túmulo para sair, e que isto já teria ocorrido algumas vezes. Por este motivo seu túmulo teria sido amarrado com correntes para que não mais fugisse.
Sempre que passava ao pé do morro que dá acesso ao cemitério ficava olhando lá para cima com um misto de medo e curiosidade. Quando de alguns velórios que eu acabava tendo de ir acompanhando meus pais, ficava intrigado, e às vezes chegava a me “arriscar” a tentar, meio que timidamente, encontrar tal túmulo.
Muitos anos se passaram até que eu conhecesse a “real” história de Manoel da Mota Coqueiro e o que tinha de fato na lenda do homem serpente acorrentado. Vamos conhecer então a história de Manoel da Motta Coqueiro e a relação com a lenda de minha infância.
Manoel da Mota Coqueiro foi um político e proprietário de terras residente na cidade de Campos dos Goytacases que adquiriu uma fazenda em Macaé na região que hoje é o município de Conceição de Macabu.  Era uma região de terras férteis com ligação ao canal Macaé-Campos que facilitaria o escoamento de sua produção. Após a compra da fazenda, Motta Coqueiro começou os preparativos para fazê-la produzir. Comprou escravos, contratou pessoas livres e admitiu a pedido de um amigo, uma família de colonos contando com oito pessoas que tinha como chefe o senhor Francisco Benedito da Silva. Foi ai que começaram seus problemas.
O Brasil vivia a época um momento de intensas transformações. Havia acabado de extinguir seu tráfico de pessoas vindas do continente africano e aprovou uma lei de terras (que na verdade apenas beneficiou fazendeiros e aumentou ainda mais suas propriedades fazendo com que pessoas pobres, ex-escravos e ou os raros imigrantes não tivessem acesso a terra) e que segundo Sergio Buarque de Holanda, essas transformações “só poderia levar a liquidação de nossa velha herança colonial”.  
De acordo com o Historiador Marcos Costa, autor do livro “o Reino que não era deste mundo” esse período foi um momento de vitalidade excepcional, tanto nos negócios quanto em questões de infraestrutura. O Brasil começava a dar alguns passos no caminho da “modernidade”.
Mesmo com esses passos no caminho da modernidade ainda convivíamos com o espectro da escravidão e com uma desigualdade extremamente elevada. Algumas pessoas ainda eram tratadas como coisas e pouco ou nenhum direito possuíam. É curioso acreditar que um homem poderoso como Coqueiro pudesse ser condenado por um crime tendo como testemunhas de acusação escravos e pessoas que nada presenciaram. Em livro contando a História de Conceição de Macabu, Carlos Marchi escreve sobre as lições do caso Coqueiro.  Marchi afirma que houve uma armação política para condenar a qualquer custo Motta Coqueiro.
Após comprar a fazenda começou a organiza-la trazendo animais e escravos de suas propriedades em Campos dos Goitacases. Motta coqueiro acabou por se envolver com uma filha de Francisco. Conta-se que a esposa de Coqueiro teria ficado sabendo do romance através de um escravo que teria flagrado um encontro.
Sua esposa o interrogou sobre o fato, que ele obviamente negou, mas ela exigiu que ele expulsasse a família de Francisco de suas terras.  Francisco resistiu em sair, pois alegou ter muitas benesses feitas nas terras e que havia plantios a serem colhidos. Armando Borges conta que ao saber da recusa do lavrador de sair das terras, Dona Úrsula teria prometido tomar providências. Dias depois Francisco e sua família foram alvo de um ataque de jagunços que o agrediram e tentaram incendiar sua casa. Borges afirma que “Mota Coqueiro fora acusado de mandante, fato este que o deixou muito revoltado, pois só viera a saber do acontecido três dias depois ”.
Em 12 de setembro de 1852, novo ataque contra a casa de Francisco e finalmente o objetivo alcançado: a casa é incendiada e sete pessoas mortas. A moça com quem Coqueiro se envolvera consegue fugir. Coqueiro, que se encontrava na Cidade de Campos no dia do ocorrido, foi informado ao chegar à fazenda no dia seguinte por seu capataz Fidelis. Borges conta que ele teria ficado consternado com o fato e teria dito que tinha certeza de que iria ser acusado de mandante do crime.  
Coqueiro teria tido um julgamento cheio de contradições e acontecimentos incomuns, como ter escravos depondo contra o mesmo. Teria sido alvo de um complô articulado que teria entre seus idealizadores um primo seu, que teria uma mágoa por conta de um amor no passado que teria sido seduzida por Manuel da Motta Coqueiro.
Após a condenação, ele foi enforcado no dia 06 de março de 1855, tendo ficado preso na cidade do Rio de Janeiro entre 1852 e 1855. Retornou a Macaé para seu enforcamento. Parada nos informa que os motivos para seu aprisionamento na capital se deu devido à hostilidade dos macaenses por conta de tal terrível crime, e segundo por conta da precariedade da cadeia municipal. A cadeia se localizava na esquina das ruas visconde de Quissamã com governador Roberto Silveira.
 Parada nos conta que no ano de 1897 foi encontrado um esqueleto algemado nos arredores do cemitério de Santana. Essa descoberta foi possível devido à necessidade de aumento do cemitério. Ainda segundo Parada o esqueleto estava em perfeito estado de conservação e foi posteriormente colocado em exibição pública nas dependências do jornal “O Século”. Ainda segundo este autor muitas dúvidas foram levantadas sobre a origem do esqueleto e a conclusão a que chegaram é que deveria ser de algum escravo morador de alguma fazenda das vizinhanças (Parada, p.25). 
Com o passar dos anos, com as histórias sendo contadas oralmente muita coisa se perde, e outras são acrescidas. O sepultamento da Fera no cemitério de Santana, e a descoberta mais de 40 anos depois de um esqueleto algemado podem ser os elementos que irão construir a lenda do homem serpente (fera) com o túmulo acorrentado.  
Ecléa Bosi nos diz que lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje as experiências do passado”. E essa reconstrução, os seres humanos fazem e refazem a todo o momento. A memória é seletiva. Selecionamos e guardamos detalhes parciais de determinados acontecimentos, e quando contamos sempre falta algo, da mesma forma que aquele que nos ouve, ao reproduzir, jamais contará da mesma forma.
Desta forma a lenda do homem serpente e o caso de Motta Coqueiro chegaram até minha infância. Muitos outros ouviram estas histórias de variadas formas, com diferentes elementos que serviram e continuam a servir para incrementar e colorir nosso imaginário, deixando o folclore local sempre tão apaixonante e renovado a cada dia.

Referências.

BORGES, Armando. Histórias e lendas de Macaé. Itaperuna, Damadá artes gráficas, 2005.
_________. O último enforcado. Itaperuna, Damadá artes gráficas, 2004.

COSTA, Marcos. O reino que não era deste mundo. Rio de Janeiro. Valentina, 2015.

FRANCO, Maria da Conceição Vilela. Morte, Memória e História: a sepultura de Motta Coqueiro como lugar de reprodução simbólica do imaginário social macaense. Acessado no dia 20 de outubro de 2015 na página: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308165251_ARQUIVO_TEXTOCOMPLETO-01.pdf.

GOMES, Marcelo Abreu (Org). Conceição de Macabu.  História das origens até a segunda emancipação. Livro digital gentilmente cedido pelo Professor Marcelo Abreu Gomes.


PARADA, Antonio Alvarez. Histórias curtas e antigas de Macaé. Rio de Janeiro, Artes Gráficas, 1995. 

terça-feira, 28 de julho de 2015

Lampião era macaense...

 Lampião era macaense...

A grande maioria dos brasileiros conhece razoavelmente a história ou já ouviu falar do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, que ficou mais conhecido por conta de seu apelido “Lampião”. No caso dos habitantes de nossa cidade, Macaé, não seria diferente. Agora o que poucos sabem inclusive os macaenses, é que Lampião viveu muitas aventuras de sua vida como cangaceiro aqui em nossa cidade. Pelo menos na ficção. É que no ano de 1969 a R.F.Produções Cinematográficas escolheu nossa cidade para rodar o filme “Lampião não discute, mata”.
O filme foi rodado em várias partes da cidade, como morro de Santana, Córrego do Ouro, Frade e Fazenda da Boa fé. Aliás, a época ainda existia um enorme casarão colonial nesta fazenda, ainda remanescente do período escravocrata brasileiro, mas que hoje, infelizmente se encontra derrubado e com apenas alguns vestígios de sua antiga construção.  No filme é possível ver, mesmo que rapidamente, como eram os distritos de Frade e Córrego do Ouro e comparar com os dias atuais e suas mudanças promovidas pelo desenvolvimento petrolífero.
De acordo com Isaac Souza, Jornalista do jornal O Rebate incumbido de fazer a cobertura da produção, o roteiro era muito bom para a época e possuía as mais modernas técnicas cinematográficas, que enfatizavam um Lampião violento, como é de costume a sua representação.
Lampião foi morto no dia 28 de julho de 1938 no Estado de Sergipe na gruta de angicos aos 40 anos de idade. É uma das figuras mais controversas da História do Brasil, sendo um dos brasileiros com maior número de livros publicados a seu respeito, tendo livros escritos até em japonês sobre sua história.
Segundo o jornalista Moacir Assunção da Folha de São Paulo, autor do livro “Os homens que mataram o facínora”, Lampião era um bandido.  Ainda segundo este jornalista, Lampião era um bandido extremamente inteligente, mas era apenas isto.
Esta visão não é a única sobre o rei do cangaço nordestino e nem pode ser vista como a que representa a verdade do personagem, da época e do cangaço. Há os que o vejam como um insurgente que lutou contra as forças dos coronéis que concentravam riquezas e manipulavam os mais pobres para obter a perpetuação de seu poder e de seus familiares. Muitos dos movimentos de contestação do fim do século XIX e início do século XX tinham a miséria como motor, e uma vida digna como objetivo. A maioria das pessoas pobres do sertão nordestino era submetida a regimes de trabalho semelhantes à escravidão recém-abolida no ano de 1888.
Os movimentos de Canudos e Contestado são exemplos desta luta por dignidade e contra o poder dos grandes latifundiários.  Em Canudos, pessoas miseráveis lutaram por um pedaço de terra até serem mortas pelo Exército Brasileiro. Foram mais de 20 mil assassinatos de crianças, mulheres e homens pobres e famintos. Com certeza uma das maiores vergonhas de nossa História.
Olhando a partir deste viés, fica mais fácil entender a postura e os caminhos de determinados grupos que se insurgiram contra os Coronéis feudais de um século atrás.
A Pesquisadora Fátima Teles no artigo “O cangaço, o latifúndio e as oligarquias”, discute o papel dos grupos rebeldes no contexto social de seu tempo e de sua região. Segundo Teles
Analisar o cangaço é investigar também o contexto socioeconômico e cultural do Brasil desde a sua colonização no que tange a questão agrária. Um país “descoberto” por europeus que não respeitavam a cultura dos habitantes ali encontrados, iniciando assim uma série de violências contra a etnia que habitava as terras e palmeiras brasileiras. O poder político do Império através das capitanias e sesmarias concedeu terras aos seus correligionários em detrimento dos que ali já viviam, plantavam, produziam e colhiam. Posteriormente a exploração da mão de obra escrava também não era questionada em razão das etnias tidas como minorias não serem reconhecidas culturalmente sendo tratadas como inferiores, forçadas ao progresso “civilizador.
É neste contexto repleto de contradições que surgem os cangaceiros nordestinos. São filhos da miséria, da exclusão, da exploração e da desigualdade social que se alastrou pela terra brasilis pós-chegada de Cabral.  A proclamação da República de 1889 não produziu efeitos na melhoria dos que já eram explorados há séculos. Os que viveram na escravidão e que haviam conquistado a alforria um ano antes viram no trabalho livre quase que as mesmas condições de trabalho do regime da escravidão.
No nordeste brasileiro o povo sofrido buscava de diversas formas escapar da fome e de suas agruras, que no ano de 1877 teria matado em torno de 500 mil pessoas. Movimentos religiosos como o de Antonio Conselheiro buscavam criar na terra uma comunidade em que este flagelo não fosse mais uma constante em suas vidas. Teles relata que “As condições climáticas do semiárido nordestino favoreciam o surgimento de secas prolongadas de tempos em tempos, castigando a produção agrícola do homem do campo trazendo miséria e fome. As secas, o controle social, a partir da prática de favor cultivada pelos senhores de fazenda diante dos trabalhadores fez com que alguns se indignassem e fossem mudar o seu destino, adentrando no cangaço ou no messianismo”.
Virgulino, homem de fé que era, optou pela primeira opção; o cangaço. Segundo Bezerra (2009), Virgulino, ao tornar-se Lampião, não pensou ser bandido ou herói: apenas disse não a uma agressão sofrida e reagiu. Subverteu a ordem estabelecida. Foi autor da sua própria história e não, apenas, coadjuvante na história de alguém. Subverteu a ordem quando matou, quando invadiu cidades, quando escolheu seu destino...”.
Para Virgulino, sendo de forma consciente ou inconsciente, seu posicionamento naquela sociedade era a principal maneira de enfrentar a ordem autoritária vigente. Era a resposta devida aqueles que viviam da exploração e ganhavam com a miséria humana.
“Lampião foi o produto de uma sociedade desigual econômica e socialmente, que por não oportunizar os trabalhadores à dignidade transforma-os em rebeldes e revolucionários. Sendo produto de uma história ele também se torna seu produtor pois interfere nessa história e a modifica como autor do seu próprio destino, da sua história. Portanto, como sujeito, ele constrói e transforma. Lampião não se tornou só o produto de um Brasil ditado por uma elite dominante que governava em prol dos seus próprios interesses. Lampião se torna construtor da história de luta dos sertanejos que escolheram a vida rude e violenta do mundo do cangaço e dessa forma enfrentou governantes de toda a Região nordestina a tal ponto que ficou conhecido pelo seu destemor até hoje em pleno século XXI, de modo que não se fala em cangaço sem a figura emblemática de Lampião, representante maior do cangaço brasileiro”. (TELES, 2014).
A imagem de bandido do cangaceiro nordestino é uma construção de nossas elites, que como de costume, coloca no desfavorecido a responsabilidade por seu destino, não deixando claro para a maioria de nós os vários fatores que envolvem as “escolhas” feitas por pessoas e grupos em situação de extrema miséria. Hoje completam 77 anos de seu assassinato. Viva a memória de Lampião...
Bibliografia:
TELES Fátima. O cangaço, o latifúndio e as oligarquias. Artigo publicado na página: http://www.vermelho.org.br/noticia/249409-11
Rosa, Bezerra. A representação do cangaço. Recife. Ed.do autor, 2009.apud Teles, 2014.




Quilombos e quilombolas na terra dos índios Goitacá...

         Quando pensamos em quilombo o primeiro nome que vem ao nosso pensamento é o quilombo de Zumbi dos palmares, pois este foi e até hoje é o mais famoso ajuntamento de negros como forma de resistência a escravidão no Brasil. Porém sabe-se que muitos outros existiram em todo o país.
         A definição de quilombo hoje em dia sofreu transformação, assim como a relação dos negros com a sociedade que ao longo do tempo vem sendo trabalhada para que a visão racista e preconceituosa do passado possa ser superada, embora ainda esteja muito distante do ideal em se tratando de igualdade entre negros e brancos. Sabemos que uma comunidade negra rural que agrupa descendentes de escravos e que vive da cultura de subsistência, expressando forte vínculo com o passado em suas manifestações culturais, tem ligação direta com um quilombo, ou seja, é um quilombo que teve sua memória transformada de alguma forma na tentativa de esquecer um passado de dor e sofrimento, mesmo que de forma inconsciente porque na verdade ninguém esquece de suas raízes. 
         A questão da tentativa inconsciente de querer se livrar do rótulo de quilombo era que não tinha nenhum benefício em se lembrar disso, pois quilombo era visto como lugar de negros fugidos e malfeitores, pois enquanto estavam a serviços dos seus senhores e sendo subalternos sem reclamar, eram vistos apenas como bons ou maus serviçais, mas, se reivindicavam direitos e condições melhores, a única coisa que ganhavam era o rótulo de desqualificados e de malfeitores.
         Hoje vejo que isso foi uma estratégia para conseguir superar as dificuldades, mesmo que seja de forma inconsciente, pois se livrar do estigma de negro era pressuposto para alcançar os direitos que foram negados aos seus antepassados. Era uma forma de criar uma identidade de acordo com as interpretações culturais que os rodeavam, já que, em qualquer sociedade e principalmente na capitalista, quando são negados os direitos sejam eles sociais, políticos ou outro qualquer, e faltam forças e estratégias para lutar contra esta forma de dominação, o que resta é negar-se como tal para poder conseguir algo. Por isso é compreensível que a pouco tempo atrás o próprio negro se negasse como tal, haja vista, não era vantagem nenhuma ser negro, e temos que entender que isso fazia parte de um processo histórico, construído ao longo do tempo e que naquele momento estava tão enraizado que era visto como normal pela maioria das pessoas. Se matar foi uma forma de continuar vivo até poder lutar pelos direitos negados até então.
         A expressão quilombo vem sendo sistematizada desde o período colonial no Brasil, pois sabemos que desde que existe a escravidão, existe resistência e tentativa de se livrar desse modo de trabalho desumano. Entre as maneiras de se defender estavam a busca de refúgio em algum lugar em que o senhor não pudesse os encontrar, o suicídio, o justiçamento e insurreições, como nos diz Mario Maestri em seu livro o escravismo no Brasil. Para este autor “a fuga era a maneira mais simples, segura e rápida de o negro libertar-se” e a maneira mais segura era procurar um lugar que já existisse outros negros para se organizar contra a violência dos senhores escravocratas. Existe autores como Ney Lopes afirmando que “quilombo é um conceito próprio dos africanos bantos que vem sendo modificado através dos tempos” (...) Quer dizer acampamento guerreiro na floresta, sendo entendido ainda em Angola como divisão administrativa”. No Brasil colonial qualquer ajuntamento de negros que passasse de cinco era considerado quilombo, mesmo que não tivessem habitações e pilões no local e a ordem era dar fim a organização dos negros, para isto foi criado a profissão de Capitão-Do-Mato, que era uma espécie de caçador de negros tidos pelos escravagista como “fujões”.
         Para Silvia Lara, autora do livro “Campos da violência - escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro (1750-1808)”, não se encontrou documentos que comprovem a existência de um grande quilombo na região dos Campos dos Goitacazes, porém pela presença de capitães do mato e relato de fuga de negros pode-se deduzir que existiram uma boa quantidade de quilombos nesta área. Mas Hélvio Cordeiro conta em seu livro “Carukango o príncipe dos escravos” a saga do moçambicano que ao ser trazido para o Brasil e adquirido por um senhor na cidade de Macaé, nunca aceitou ser escravizado e criou um quilombo na serra do deitado com uma organização bem próxima ao famoso quilombo de palmares, onde fizeram plantações e moradias de forma organizada. O pesquisador nos diz que após uma ação de fuga bem-sucedida planejada por Carukango na fazenda a qual fazia parte do quadro de escravos, “Os negros seguiam para o cume das montanhas da serra do deitado, região habitada na época somente por índios e fugitivos, que hoje faz parte dos municípios de Macaé e Conceição de Macabu”. Outra passagem interessante é que quando o quilombo foi destruído pelo aparato militar entre as milícias do Espirito Santo e Cabo Frio montado pela família Pinto a qual pertencera Carukango, este já estava fazendo planos de mudar-se de local devido a descoberta do seu esconderijo e o destino seria a região do Imbé, local muito propicio a prática de aquilombar-se. Haja vista a quantidade de comunidades quilombolas nesta localidade. Carukango e seus 200 quilombolas foram dizimados na primeira metade do século XIX pelo Coronel Antão de Vasconcelos e fazendeiros locais, mas deixou um legado de luta e bravura contra a escravidão de seu povo, pagando com a própria vida seu ato de repúdio a exploração humana que na verdade tinha a função de desumanizar os africanos.
         Com relação aos quilombolas da região Silvia Lara relata que em 1784 João Gomes de Sousa e seus soldados foram presos na cadeia da vila por terem assassinado o cabra Gabriel quilombola. Veja que este quadro é uma exceção, onde quem matou um escravo foi punido pela lei, porém a punição não era pela vida do negro, já que não haveria pena para quem matasse um negro que estivesse aquilombado e negasse a se entregar e, sim pelo prejuízo que causara ao dono do escravo, pois o senhor acabara de perder um bem que além de ter custado algum dinheiro ainda não teria seu investimento na forma de prestação de mão-de-obra já que o escravo estava morto. Segundo a autora “todos moradores e Capitães-do-mato para que dessem nos quilombos, permitindo-lhes matar, sem pena alguma da justiça, os negros que resistissem (à semelhança do praticado nas Minas Gerais”, mostrando que a câmara da vila de São Salvador estava ligada no que acontecia em outras regiões das terras Luso-Brasileira. Assim matar um negro que não aceitava ser escravizado, além de não ser crime ainda poderia render uma boa recompensa.
A figura do capitão do mato é constante nos registros que vão tratar da fuga de escravos em todo o império e em Campos dos Goitacazes não é diferente, porém é a partir do século XVIII que essa profissão aparece com mais afirmação, já que é nas primeiras décadas que aparecem regimentos locais a respeito da profissão destacando como atribuições dos mesmos e prêmios pela entrega dos fugitivos. Para a escolha do Capitão-do-Mato uma das formas de provimento era feito pelos vereadores em uma eleição, onde chamava-se o candidato aprovado para o cargo e o mesmo prestava um juramento para em seguida tomar posse. Dinheiro público era empregado neste oficio, já que em outubro de 1969 a “câmara da vila de São Salvador mandou dar ao Mestre de Campo “100$000 réis para as despesas que se haviam de fazer para preparo dos homens que haviam de dar nos quilombos dos pretos fugidos”. Nos Campos dos Goitacazes Capitães-do-Mato são encontrados na parte norte do rio paraíba, assim como abaixo do norte e sul, sertão do rio Ururaí, chapéu do sol, ponta grossa, Macaé e Lagoa de Cima, cada capitão tinha sua circunscrição e normalmente era do lugar para facilitar na busca dos fugitivos.
Sobre os quilombos Clóvis Moura vai falar em “QUILOMBOS - Resistencia ao escravismo”, que “no Brasil, como em outras partes da América onde existiu o escravismo moderno, esses ajuntamentos proliferaram como sinal de protesto do negro escravo às condições desumanas e alienadas a que estavam sujeitos” e quanto mais aumentava a pratica da escravidão, a sua negação em diversas formas e principalmente a de aquilombar-se também crescia como sintoma de resistência, desta forma onde houvessem escravos haveria um quilombo.
Em terra Goitacá, o quilombo foi descrito pela câmara segundo Silvia Lara como um lugar “em que estivessem arranchados e fortificados com ânimo a defender-se que não sejam apanhados e não em qualquer rancho por se repararem do tempo, porém achando-se de 6 escravos para cima que estejam juntos se entenderá também quilombo”. Esta definição pouco difere da que foi dada anteriormente pelo Rei de Portugal em 1740, onde as habitações que passassem de cinco negros fugidos eram consideradas quilombo. A parte interessante da definição da câmara é que se fala em defender-se, ou seja, fica explicito que os quilombolas eram atacados de forma violenta pelos caçadores de escravos e para não voltar a vida desgraçada que lhes era imputada às vezes reagiam em defesa de sua liberdade.
         Portanto se não existem registros documentais de um grande quilombo em nossas terras, o fato é que os quilombos existiram e em grande quantidade, para isso basta verificar a quantidade de ações contra os quilombolas. Em 1792 por exemplo, a câmara foi mobilizada para que tomasse atitude em relação aos quilombos que existiam nos sertões deste distrito, sendo montado um grande contingente de Capitães-do-Mato e ajudantes passando de 200 homens para procurar e destruir quilombos na região, obtendo um resultado satisfatório na captura e destruição das moradias quilombolas. Por outro lado, se pensamos em números maiores deste ajuntamento de escravos para sua defesa, podemos perceber que houve época que teve que tomar uma atitude mais elevada em relação aos refugiados o que mostra que nesta época teve uma organização mais elaborada por parte dos quilombolas o que nos faz lembrar do quilombo de Carukango em Macaé que tomou proporções elevadas ainda no início do século XVIII.
         Se os documentos não mostram os lugares exatos dos quilombos dos Campos dos Goitacazes e, se foi feito uma tentativa de esquecer o passado para se livrar do estigma da escravidão com derrubada de antigos casarões com suas senzalas e seus troncos penalizadores, por outro lado não conseguimos apagar a memória dos que fizeram parte desse processo. Para isso recorremos aos documentos vivos de nossas comunidades que na forma de oralidade relata as querelas que seus antepassados tiveram para defender seus quilombos e suas vidas. Hoje com as ações positivas voltada para as comunidades quilombola está fazendo com que este tema entre em discussão com maior ênfase, o que é muito importante, tanto para descobrirmos e mapear os quilombos existentes em nossa região, como também mostrar a luta e perseverança dos negros escravizados nessas terras. O passado não pode ser apagado, principalmente quando se trata de erros, pois se não conhecemos os erros do passado corremos o risco de cometê-los no futuro.