segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A polêmica sobre as famílias no cativeiro...

Saint-Hilaire- Você naturalmente se aborrece vivendo muito só no meio do mato?
Escravo – nossa casa não é muito afastada daqui; além disso, eu trabalho.
S.H.-você é da costa da África. Não sente algumas vezes saudades de sua terra?
Escravo – não, isto aqui é melhor; não tinha ainda barba quando vim para cá; habituei-me com a vida que passo.
S.H.- mas aqui você é escravo; não pode jamais fazer o que quer.
Escravo – isso é desagradável, é verdade; mas meu senhor é bom, me dá bastante o que comer; ainda não me bateu seis vezes desde que me comprou, e me deixa tratar da minha roça. Trabalho para mim aos domingos; planto milho e mandubis (arachis) com isso arranjo algum dinheiro.
S.H.- é casado?
Escravo – não; mas vou me casar dentro de pouco tempo; quando se fica assim, sempre só, o coração não fica satisfeito. Meu senhor me ofereceu primeiro uma crioula, mas não a quero mais: as crioulas desprezam os negros da costa. Vou me casar com outra mulher que a minha senhora acaba de comprar; essa é da minha terra e fala minha língua.[1]
                                                     

O texto acima trata de um diálogo registrado no diário do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire que percorreu o Brasil a partir do início do século XIX, e um escravo. Tal encontro teria ocorrido na região do atual estado de Minas Gerais. Nele podemos encontrar assunto para uma série de discussões e questionamentos a respeito da escravidão e do modo de viver dos escravos. A parte que interessa para esta pesquisa é a relativa à roça e a família cativa. No texto fica clara, tanto a roça, para ser trabalhada em seu dia, ou dias de folga, quanto à constituição de família pelo escravo. Com relação à família cativa, tema deste capítulo, sua amplitude e existência, trata-se de campo de pesquisa que passou a despertar maior interesse em períodos e épocas recentes. Seus estudos exigem minuciosa pesquisa, pois “penetrar na comunidade escrava tem sido uma das tarefas mais difíceis que os historiadores se Atribuíram”.[2] Existem muitas referências a família cativa, mas na maior parte dos casos, são documentos que tratam a questão com um olhar impregnado de preconceitos. Muitos relatos se apresentam com riqueza de detalhes, mas que merecem cuidados, afinal, foram produzidos por homens que tinham a escravidão como algo natural e permanente. Boa parte destes relatos acabou por fazer uma descrição desmerecedora sobre a “constituição” de famílias cativas.  Os “olhares brancos” dos viajantes e dos brasileiros e portugueses bem nascidos que escreveram sobre o assunto, simplesmente não perceberam os lares negros devido a seus preconceitos raciais, culturais e ideológicos.[3] Devido a estes preconceitos é que talvez seja possível entender declarações como a de Charles Ribeiroles, que, ao descrever a vida do escravo no cativeiro relatou da seguinte forma:

“A fome macilenta não entra na habitação do escravo (...). Mas nela não há famílias, apenas ninhadas. (...) O trabalho, para ele, é aflição e suor, é a servidão. Por que manteria a mãe seu cubículo limpo? Os filhos podem lhe ser tomados a qualquer momento, como os pintos ou os cabritos da fazenda, e ela mesma não passa de um semovente. (...) Nos cubículos dos negros, jamais vi uma flor: é que lá não existem esperanças nem recordações.[4]


 O relato acima se enquadra como uma clara definição do olhar do homem europeu, branco, bem nascido, dito “civilizado”, diante de um quadro totalmente contrário ao seu, em que o mesmo “acredita” estar diante de um ser “semovente”, pouco ou nada racional, equiparado a coisas e animais. Ribeiroles tinha um padrão definido do que seria uma “família”, e o que vira nas senzalas brasileiras passava ao largo de suas definições “ideais”. Mesmo assim, é através destes relatos e da análise minuciosa de outros documentos, como registros batismais, cartorários, autos de prisão, documentos de compra e venda, processos crime de escravos e ordenações reais, que tem sido possível entender um pouco melhor este seguimento social e suas práticas cotidianas, tanto em propriedades escravistas quanto em aldeamentos quilombolas. Assim como a economia cativa (brecha camponesa), a existência da família escrava também é alvo de polêmicas e discussões acirradas. Schwartz afirma que

a questão da família escrava no Brasil- sua existência, estrutura, estabilidade, longevidade e seu papel dentro da vida dos escravos e da história de seus descendentes- há muito é questão de interesse, mas só recentemente tornou-se tema de pesquisa séria. Os comentários depreciativos de alguns observadores e abolicionistas do século XIX acerca da promiscuidade, da falta de laços de família e da fragilidade desta perante a venda e a separação, foram repetidos e embelezados por historiadores e sociólogos posteriores, para explicar os subseqüentes padrões contemporâneos negativos da comunidade afro brasileira.[5]


3.2. A SUPERIORIDADE MASCULINA NO CATIVEIRO
Um dos principais críticos á existência da família escrava no Brasil é Jacob Gorender. Para este autor um dos problemas para a formação desta família se encontrava na questão da razão e proporção entre os sexos. O número de homens fora sempre superior ao de mulheres, ficando em torno de 1/3 do total de homens. Logo, realmente podemos entender que houve de fato uma grande desproporcionalidade. Vejamos o que o mesmo diz:

Acontece que, no segmento dos plantéis grandes e médios, a razão de masculinidade (proporção numérica de homens para cada cem mulheres) era de 188. Demonstração de que, á altura de 1872, a preferência do plantador pelo escravo masculino continuava tão acentuada nas fazendas cafeeiras de Campinas, quanto à época do tráfico africano. Disso resultava que apenas 30% dos homens adultos eram casados ou viúvos.[6]


Baseado nas afirmações de Gorender pode-se constatar que o número de escravos masculinos e solteiros foi de proporção elevada. A falta de mulheres era realmente um grande empecilho para o desenvolvimento considerável de famílias cativas. Mesmo assim, o mesmo nos afirma que “30% dos homens adultos eram casados ou viúvos”. Acredito que possamos entender este número como algo de proporção considerável. Veremos mais adiante por que. Outros autores como Roger Bastide e Florestan Fernandes, também contrários a idéia de família cativa, seguem na mesma linha de pensamento. Para estes autores, a presença masculina em tal “família”, seria praticamente inexistente. A formação de laços sociais entre os escravizados seria praticamente impossível. Robert Slenes, considerado por muitos o principal especialista em pesquisas referentes à família escrava no Brasil, teceu as seguintes críticas a respeito da análise de Bastide e Fernandes. Vejamos:

  Nas propriedades maiores, a experiência de viver numa família conjugal estável era a norma para a maioria de mulheres e crianças escravas. Além disso, em propriedades “maduras”, com muitos anos de funcionamento, essa estabilidade se traduzia na existência de muitas famílias extensas, contando com a presença de três gerações e a convivência entre irmãos adultos e seus respectivos filhos. Se o tráfico africano e interno despejava sempre mais “estrangeiros” (principalmente homens) nas fazendas da região, não é verdade que a maioria dos cativos, muito menos mulheres e crianças, estivessem perdidos uns para os outros, vivendo em condições de anomia. Portanto, as conclusões de Fernandes e Bastide a respeito do processo de aculturação dos escravos, de sua incapacidade “política” e das causas de sua falta de mobilidade social após a abolição, são improcedentes.[7]


3.3. AS RELAÇÕES DE COMPADRIO ENTRE OS ESCRAVOS

Robert Slenes e Sheila de Castro Faria fizeram comparações entre a demografia escrava do oeste paulista e a do Vale do Paraíba (tanto paulista quanto fluminense), estando incluídos ai os Campos dos Goytacazes. Baseado em tais pesquisas, os mesmos afirmam que “os senhores encaravam o casamento formal escravo não apenas como uma instituição que contribuía para a reprodução, mas também como elemento simbólico para seu domínio.[8]
Entre as fontes utilizadas para pesquisas que objetivam encontrar os indícios da família escrava, as fontes batismais são de grande importância para esclarecer o assunto. Schwartz ao analisar estas fontes no capítulo seis de obra já citada neste trabalho, apresenta a relação de compadrio na vida familiar brasileira. O mesmo tenta buscar a presença do escravo dentro deste sistema.[9] Sobre estas relações, o mesmo nos relata que

podiam-se estabelecer relações de compadrio de diversas maneiras: por intermédio de casamento, crisma, ou mesmo em certas festividades, como a do dia de São João, quando ao dar as mãos e pular a fogueira juntos, os indivíduos podiam tornar-se “compadres da fogueira.” A igreja não aprovava essas criações populares de compadrio, mas o costume continuou... No contexto do catolicismo, o batismo era a principal maneira de tornar qualquer indivíduo, escravo ou livre, membro da sociedade cristã. Não obstante, os escravos tinham diversos meios de criar elos de associação ou formas de parentesco, tanto dentro das estruturas da sociedade predominante quanto fora delas. Os laços criados pela etnia, pela língua, pela religião e pela política africana continuaram a funcionar no Brasil, como demonstram as rebeliões etnicamente organizadas do início do século XIX. [10]


Como se pode ver, as relações de compadrio poderiam ocorrer de diversas formas, e objetivavam a formação de laços sendo de sangue ou não. O africano recém chegado, para tornar-se membro da sociedade cristã, teria de ser batizado, e o mesmo ocorrendo com os nascidos aqui, em terras brasileiras, filhos de outros escravos. Se para o batismo se fazia necessário a presença da madrinha e do padrinho, conseqüentemente teríamos de ter, na maior parte dos casos, a presença de ambos os pais. Estaria aí um indício da formação de famílias escravas. Florentino e Góis enfatizam que

pelo casamento e, antes ou depois, por meio do nascimento de uma criança escrava, vários indivíduos criavam ou estreitavam laços que, nas difíceis circunstâncias da vida em escravidão, eram laços de aliança. A mãe e o pai da “cria” (como aparecem nas fontes) viam reafirmando o propósito comum de juntarem suas forças de modo à melhor viver à vida possível. Ambos arrumavam um compadre e, muitas vezes, uma comadre. E, talvez, cunhados, cunhadas, sogros e sogras. E se a criança, o que não era fácil, sobrevivesse até a idade de procriar, muito mais alargada ainda seria essa rede de laços de solidariedade e aliança. Parece óbvio que a criação de laços parentais fosse desejo de todos os escravos.[11]


 Reconstruir laços, formar nova família, estaria ao lado da liberdade entre os objetivos de vida destas pessoas. Seu surgimento, que é pressuposto para o desenvolvimento da roça escrava, pode ter decorrido de pelo menos dois fatores: a concessão senhorial, visando à manutenção da ordem, ocasionando diminuição nas fugas, e, por outro lado, pressões exercidas pelos escravos na busca por redes de alianças familiares. Albuquerque afirma que “os cativos “buscavam manter relações conjugais estáveis, além de construir redes de parentesco extensas para além dos laços consangüíneos”.[12]
A relação de compadrio seria um dos meios para obtenção de tais laços. Entretanto, a formação destas famílias enfrentava outros problemas que são apontados pelos críticos, e que estão relacionados à compra e venda de pessoas. Tais críticas partem do pressuposto de que se uma família se formasse, não havia garantias de que ela se perpetuasse, afinal, os senhores poderiam em algum momento vender um dos “cônjuges” e acabar por desfazer esta relação. Com certeza, a ampla maioria dos cativos vivia sob esta ameaça. Mesmo assim, “estudos mais recentes no Brasil têm demonstrado que, nas grandes plantações de café e cana, parte considerável dos cativos conseguiu criar e manter relações familiares.[13]
A autorização dos senhores escravocratas para a formação familiar, poderia basear-se na idéia de que esta formação poderia fazer com que o escravo se fixasse a terra, e acabasse criando para si mesmo, maiores empecilhos para a fuga, afinal, fugir com mulher e filhos seria algo muito mais difícil. Reis e Silva já nos deram a informação de que no sul dos Estados Unidos, pelo menos 80% dos fugitivos eram homens e jovens com idade média de trinta e cinco anos. Esta afirmativa nos revela indícios de que casais, principalmente com filhos, dificilmente buscariam as fugas. Logo, incentivar o desenvolvimento de família entre os escravos poderia diminuir estes problemas.
Se por um lado os escravos podem ter buscado a formação de famílias, por outro os senhores podem ter encontrado na mesma um instrumento de contenção de fugas e revoltas. Albuquerque confirma esta hipótese afirmando que,

No interesse de garantir condições mínimas de segurança para si e para sua propriedade, houve senhores que preferiam garantir alguma estabilidade familiar aos seus cativos. Na visão desses senhores, o escravo preso ás responsabilidades familiares tinha menos predisposições para fugir ou rebelar-se.[14]


 3.4 – Casamentos entre cativos e libertos: aumento na mão de obra da fazenda.

Pode-se constatar que de fato os senhores viam a formação das famílias cativas como um instrumento para apaziguar possíveis descontentamentos e perdas econômicas provenientes das fugas e do atraso na produção. Fazer concessões aos cativos passa a ser uma opção necessária para a manutenção da ordem do sistema. A utilização única e exclusiva da violência como instrumento de domínio não poderia perdurar por muito tempo. Por mais que senhores utilizassem-na em larga escala durante todo o período da escravidão, estes teriam de enfrentar as reações dos escravizados, que em muitos casos, atentava contra a vida do senhor em igual ou maior proporção.
A idéia de que certo número de cativos chegou a possuir família e um pedaço de terra para plantar em proveito próprio, não quer dizer que a escravidão não fora malévola. Não está se tentando descrever um cativeiro menos violento ou paternalista. A violência fora utilizada em demasia; não há o que se questionar. Mas há que se levar em conta que havia outros fatores, que são derivados dos constantes enfrentamentos e revoltas que esta violência desencadeava. É a violência contra o cativo que irá levar a sua revolta, e esta reação provocará prejuízos ao seu senhor, que terá de buscar estratégias para controle da escravaria. Por outro lado fica clara a apropriação do escravo destas possíveis concessões em benefício próprio, procurando levar à vida da melhor forma possível, buscando ajustar as condições que lhe foram impostas ao seu modus vivendi. Com relação à formação dos casais, estes também sofriam variações. Os casamentos não se davam apenas entre cativos. Poderiam ocorrer também entre estes e libertos.  Muitos casamentos deste tipo acabaram sendo incentivados por senhores por um fato que passaria a proporcionar um aumento na mão de obra, tendo em vista que o liberto possivelmente passaria a viver na propriedade, já que o escravo dificilmente iria para fora dela.
A maior parte dos registros de matrimônio constante dos arquivos de várias paróquias no país apresenta um número pequeno de registros de casamento de cativos com cativos. Possivelmente a incidência de casamentos entre cativos e libertos se daria devido à libertação de apenas um dos membros do casal, e que os mesmos já poderiam manter uma relação desde o cativeiro. Como já assinalado, esta situação proporcionaria para o proprietário a manutenção ou aumento da mão de obra, com a permanência do liberto na mesma propriedade do ainda cativo. Os registros oficiais destas uniões são de pequena proporção. Uma das explicações para este fato pode ser esclarecido com a afirmativa de que a maior parte das uniões “estáveis” não passava pelo reconhecimento da igreja. Iraci Del Nero e Francisco Vidal Luna assinalam que

ao longo da história brasileira houve predomínio maciço, entre os cativos, do intercurso sexual não legitimado, vale dizer: parcela ínfima das uniões a envolver pelo menos um parceiro escravo via-se sacramentada pela Igreja.
Do exposto, conclui-se que não se verificava rigidez absoluta com respeito às uniões entre indivíduos de segmentos sociais distintos, ainda que raros, entre senhores e seus próprios cativos.[15]


 Pode-se concluir que os números dos registros oficiais não apresentam com clareza a totalidade dos casos. Muitos relacionamentos foram “oficializados” apenas mediante autorização senhorial, e sem o reconhecimento da igreja. Conseguir legitimar a união e a conseqüente formação familiar diante da mesma, não seria provavelmente algo fácil. Costa e Gutierrez complementam dizendo que os escravos tinham de desenvolver “formas de convivência que fugia aos hábitos e costumes dos livres, e, sobretudo da igreja católica.” [16] Costa e Luna enfatizam que estas dificuldades estavam ligadas a questão do alto custo cobrado pela igreja para a sacralização do ato. Devido a isto, famílias cativas teriam se formado e perdurado ou não, dentro dos limites da fazenda, sem que fossem feitos os registros oficiais diante da igreja. A conseqüência esperada desta união, pelo menos por parte dos escravos, estava ligada a longevidade da relação. Vale frisar, que esta longevidade estava ligada a estabilidade econômica do proprietário, pois esta influenciava a união e a durabilidade da relação entre os cativos, pois se o mesmo (o senhor) estivesse em boas condições financeiras, não precisaria negociar seus escravos com regularidade, além de possibilitar um maior número de casais. Fato apurado na maior parte das pesquisas se refere à questão de que nos plantéis de número elevado de cativos, é que se verificavam maiores possibilidades de formação de famílias. Metcalf registrou em suas pesquisas em Santana do Parnaíba, que, além disto, houve uma predominância de famílias constituídas por mãe e filho. Vejamos:     

a estrutura econômica da escravidão em Parnaíba e a instabilidade da vida familiar dos escravos de pequenos proprietários encorajaram a formação de famílias escravas matrifocais. Tais famílias formaram-se como parte do ciclo familiar dos escravos, surgindo em épocas de mudança econômica na vida dos proprietários-quando escravos eram vendidos - ou após herança- quando famílias eram separadas. Em tais épocas, o laço familiar mais provável de ser reconhecido e mantido pelos senhores era o entre a mãe e filhos. Por razões bastante práticas conservavam-se freqüentemente as mães junto com seus filhos, especialmente os pequenos proprietários, para que elas pudessem continuar a criá-los. O vínculo entre mãe e filhos, foi de certa forma, o menor denominador comum da família escrava, e aquele com maior probabilidade de sobreviver aos deslocamentos durante o ciclo familiar escravo causados por herança ou mudanças econômicas na vida do proprietário.[17]


Pesquisas realizadas por Edson Fernandes no estado de São Paulo, em Lenções, no período entre 1860 e 1888, constataram uma porcentagem em torno de 1/3 de casados ou que já teriam médio na maior parte das propriedades. Nos inventários de Lenções entre os anos de 1860-1887, 36,8% deles eram casados ou viúvos, sendo 35,7% entre os homens e 38% entre as mulheres.[18] Se o número de mulheres era de fato reduzido, ficando em um terço do número de homens, pode-se constatar que este mesmo número estimado em 1/3 é o que representa o número de escravos que conseguiram formar família. Convenhamos que se trata de um número significativo se levarmos em conta que até algumas décadas, o viver escravo era atrelado ao desrespeito a regras sociais (anomia) e a promiscuidade. Sobre isto, Slenes comparou os casos do estado da Virginia nos Estados Unidos com o Brasil e as pesquisas de Kátia Matoso, e constatou que estes estudos não são suficientes para se caracterizar estado de anomia entre os cativos, mas que se pode identificar “outras estratégias para criar uma comunidade, enfatizando a importância de parentes na substituição de pais e, de não parentes no preenchimento de papéis vazios na família extensa”. [19]
A constituição de laços funcionaria não apenas como reconstrução ou inserção social por parte destas pessoas, mas poderia ter também o enfrentamento tanto a senhores quanto ao regime como um de seus signos. Pode se entender que o surgimento destas famílias emergiria de um constante “conflito entre escravo e senhor. O senhor é forçado a ceder certo espaço para os escravos formarem famílias, encarando isso, porém como parte de uma política de desmonte de revoltas.[20] Deve-se atentar para o fato significativo de que estas revoltas não seriam fruto apenas da violência imprimida pelo sistema. Poderiam surgir também a partir “de uma reflexão por parte de seus integrantes sobre sua própria experiência, entendendo por experiência o seu passado no continente africano. Sobre a política de concessão senhorial, Slenes entende que a mesma funcionava em certa medida, e que

Ao dar ao escravo algo a perder, ela o torna vulnerável, transforma o cativo em refém. A médio e longo prazo, contudo, o espaço acaba sendo altamente subversivo, pois é usado pelos escravos como lugar de criação e transmissão de uma identidade própria, antagônica á dos senhores e forjada a partir da descoberta de tradições africanas compartilhadas.[21]


A formação das famílias cativas se processava em meio a inúmeras variantes. As possibilidades de manutenção familiar estavam sob constante ameaça. Mesmo assim, foi possível verificar algo em torno de 30% de escravos casados e com famílias que em muitos casos se reproduziram em mais gerações. Tendo em vista a crueldade do regime, obter tais “benefícios” fora algo de grande importância para os cativos, que obtinham através destes laços a “reconstrução” dentro do possível, de algo parecido com aquilo que um dia tiveram em sua terra natal e que puderam chamar de família.


  



[1]SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pela província do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Tradução de Vivalde Moreira. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: EDUSP, 1975, p.53. Apud: De Carli, Caetano. A família escrava no sertão Pernambucano. (1850-1888). Dissertação de mestrado (mimeo) Universidade d Brasília, 2007, introdução.
[2] SCHWARTZ, Stuart. Op.cit.p.263.
[3] SLENES, Robert. FARIA, Sheila de Castro. Op.cit.p.4.
[4] SLENES, Robert. Na senzala uma flor –Esperanças e recordações na formação da família escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Epigrafe – contraponto.
[5] SCHWARTZ, Stuart. Op.cit.p.264.
[6] GORENDER, Jacob. Op.cit.p.46-47.
[7] SLENES, Robert. FARIA, Sheila de Castro. Família escrava e trabalho. Revista Tempo, volume 3, nº6, dezembro de 1998.p.2.
[8] Idem,p.3.
[9] Compadrio seria a relação desenvolvida entre compadres. Compadre seria padrinho em relação aos pais do afilhado.
[10] SCHWARTZ, Stuart, Op.cit.p.266.
[11] FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1997, p.173-174.
[12] ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. Uma história do negro no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006, p.97.
[13] Idem,p.97.
[14]Ibdem. Op.cit.p.97.
[15]COSTA, Iraci Del Nero da & LUNA, Francisco Vidal. “Vila Rica”: nota sobre casamentos de escravos (1727-1826). Revista “África”, São Paulo, Centro de Estudos Africanos (USP), 1981, p. 105-109.
[16] COSTA, Iraci Del Nero da & GUTIÉRREZ, Horácio. Nota sobre casamentos
de escravos em São Paulo e no Paraná (1830). História: Questões e
Debates. Curitiba, APAH, 5(9): 1984. P. 314. Apud: FERNANDES, Edson. Família escrava numa boca do sertão. Lenções, 1860-1888. Revista de História Regional, 2003, p.9.
[17] METCALF, Alida C. Vida familiar dos escravos em São Paulo no século
dezoito: o caso de Santana de Parnaíba. Estudos Econômicos. V.17,
n.2, p. 229-243, maio/ago., 1987. Apud: FERNANDES, Edson. Op.cit, p. 18-19.
[18] FERNANDES, Edson. Família escrava numa boca do sertão. Lenções, 1860-1888. Revista de História Regional, 2003, p.9.
[19] SLENES, Robert, FARIA, Sheila de Castro. Op.cit.p.3.
[20] SLENES, Robert. Entrevista a Haroldo Ceravolo Sereza para a Folha de São Paulo- ilustrada- 12 de fevereiro de 2000.
[21] Idem.