sábado, 10 de maio de 2014

Rebeldia negra

Na tentativa se subverter ou alterar as regras do sistema, negros se rebelavam e utilizaram táticas que se alternavam ao longo dos tempos. Por conta disto, senhores também tiveram de rever seus conceitos. As ações promovidas pelos cativos variavam e eram diferenciadas.  De acordo com Thornton pode-se caracterizar estas ações em três níveis. Segundo ele no primeiro nível, há a diminuição do ritmo de trabalho, baixa auto-estima e atrasos notórios no processo de produção, chamado comumente de “resistência cotidiana”. Os outros dois níveis seriam as fugas, que ocorriam com objetivos distintos.[1] Havia grupos que fugiam pensando em voltar, buscando após a fuga uma negociação com seus senhores para conseguirem melhores condições de vida nas próprias fazendas. Estes não esperavam melhor sorte nas matas como foragidos sempre preocupados com as constantes expedições militares a lhes perseguir. Alguns escravos tinham isto como prática cotidiana. Um escravo valioso acabava não sendo punido, podendo ser até perdoado e recompensado ao voltar.[2] A respeito disto Thornton completa, dizendo que,

Esses “meio fugitivos”, que se ausentaram, mas que não tentaram libertar-se estavam propensos a usar o comportamento como instrumento de negociações importantes. As leis estabeleciam punições duras e até mesmo cruéis aos fugitivos. Porém, os senhores não precisavam punir seus escravos fugitivos seguindo o rigor da lei. Muitos escravos procuraram melhorar portanto sua situação através da fuga ou, ausentando-se do trabalho. Sem dúvida muitos ausentes sofreram punições, e muitos, talvez, lucraram pouco com o retorno. Para muitos a fuga assemelhava-se mais a uma greve moderna ou uma paralisação do trabalho do que uma tentativa de obter a liberdade. Esses motivos podem ter levado os escravos fugitivos a fugir para regiões nas proximidades ou mesmo para dentro do lugar onde trabalhavam. [3]


Reis e Silva completam dizendo que “muitas fugas, representavam no fundo, reações a quebra de acordo por senhores excessivamente severos ou secos como poeira, e que pequenas reivindicações deviam ser respeitadas.[4]Sobre esta forma de fuga em que o escravizado dirigia-se para lugares próximos ou até mesmo para o território nas redondezas do seu local de trabalho, Márcia Amantino nos apresenta um caso ocorrido no município de Macaé no ano de 1876 na freguesia de Macabu, fazenda santo Antônio, pertencente a Manoel da Cruz Senna.
 A respeito do ocorrido, Amantino cita que

O caso deste quilombo é um exemplo de como podiam ser estruturadas as relações dos quilombolas com seu ex senhor. De acordo com as declarações de Manoel da Cruz Senna, este quilombo se formou durante cinco anos com escravos fugidos de sua fazenda. Em momento algum estes fugitivos saíram de sua propriedade, ou seja, o quilombo foi formado dentro da área da própria fazenda e vivia de ataques e roubos as plantações da mesma.[5]


1.4.O quilombo Cruz Senna
No caso do quilombo de Cruz Senna, após inúmeras investidas e tentativas do fazendeiro de reaver suas “peças” e acabar com o quilombo, os escravos acabaram por se entregar a justiça e alegando terem fugido por conta dos maus tratos que sofriam, acabaram por conseguir serem vendidos para outro proprietário. Outros foram presos devido a envolvimento na morte de um miliciano imbuído da missão de destruir o quilombo.[6] Temos neste caso do quilombo de Cruz Senna a visualização do “meio fugitivo” que não visualizava a possibilidade de acabar com a escravidão, e sim melhorar suas condições dentro do próprio sistema. Geralmente escravos que fugiam pensando no retorno, eram os que detinham algo para negociar, como certa habilidade para algum afazer no engenho ou em algum outro serviço. Júlio Feydit relata a compra de um escravo pelo alferes Joaquim Vicente dos Reis, dizendo que o tal escravo por não se conformar com sua sorte, vivia fugindo, mas sempre retornava apadrinhado por algum outro fazendeiro. Este escravo era uma exceção entre os seus companheiros de cativeiro: era um cirurgião. [7] Silvia Lara ao analisar a violência da escravidão no mesmo município de Campos dos Goytacazes, relata a atividade escrava dizendo que na

Na fabricação do açúcar, o “mestre de açúcar” era um cargo bastante importante, pois era quem detinha o saber técnico do processo de transformação do caldo da cana em açúcar. Antonil estimava, em 1711, em 100$000 a 120$000 réis o soldo de um mestre de açúcar que fizesse 4 a 5 mil Pães por ano, e considerava-o como um trabalhador livre. Em quatro processos analisados, no entanto, encontramos mestres de açúcar escravos. Havia aindaNa  escravos pescadores, escravos que levavam recados ou objetos para seus senhores, escravas lavadeiras, cozinheiras e outras mais que faziam o serviço “de portas adentro”. A especialização mais comum, no entanto era a dos escravos empregados nos diversos ofícios: em Campos dos Goytacazes, encontramos escravos sapateiros, tecelões, carpinteiros, seleiros, alfaiates, pedreiros, costureiras, barbeiro, paneiro e até mesmo um cirurgião. O escravo Inácio, pertencente á antiga fazenda dos jesuítas em Campos, que passou para a coroa depois da expulsão dos inacianos, foi levado em janeiro de 1770 para o hospital militar do Rio de Janeiro para “entre os enfermeiros (...) assistir á prática do curativo para se exercitar na arte da cirurgia.[8]


   Este homem, habilidoso, era o que poderia obter certa vantagem em relação aos demais escravizados sem nenhuma habilidade definida, pois seus serviços poderiam auferir altos lucros nas atividades de escravo de ganho.[9] Com relação à substituição do homem livre pelo escravo em determinadas funções não apenas nos engenhos, isto passa a ocorrer a partir de meados do século XVIII. O motivo? Baratear o custo da produção. Esta mudança passa a criar certas possibilidades para os cativos que, Schwartz relata da seguinte forma:

As oportunidades que esses cargos especializados ofereciam eram incentivos, pois a diferenciação social do engenho criava as possibilidades de promoção dentro da força de trabalho e dentro da hierarquia da lavoura. Por fim com o advento das tecnologias mais complexas em fins do século XVIII e no século XIX, os agricultores brasileiros reclamavam da ignorância dos escravos e dos trabalhadores negros livres, que ainda tratavam o fabrico do açúcar como arte, e não como ciência, mas em pouco tempo os agricultores haviam lucrado com os custos operacionais mais baixos e com a manipulação das nomeações decorrentes do uso desses trabalhadores.[10]


Sobre a produção de açúcar, há que se levar em conta toda a sua complexidade. Um escravo que trabalhasse diretamente no processo de produção deveria ser muito cuidadoso, e o próprio senhor deveria tomar algumas precauções ao lidar com o mesmo. A fabricação do açúcar não seria simplesmente viável sem uma negociação. A sabotagem era um perigo constante. Fagulhas nos canaviais, limão nas tachas, dentes quebrados na moenda – tudo podia arruinar a safra.[11] Logo, senhores e escravos precisavam de uma cooperação mútua, e isto acabava gerando para o cativo certas vantagens.
Voltando a discussão dos níveis definidos por Thornton, e analisando o terceiro nível, em que se enquadravam os escravos mais obstinados, a fuga era vista como uma forma para buscar construir uma sociedade diferente daquela do cativeiro. Thornton observa que este último grupo era o que almejava a queda definitiva do sistema de escravidão colonial e a substituição do governo da classe dominante por um comandado pelos antigos escravos.[12] Outro fato que merece atenção, é que as formas de promoção destas ações estavam intrinsecamente ligadas ao cotidiano vivido por estas pessoas em sua região de origem no Continente Africano. Em África os escravizados resistiram e foi comum a rebeldia, havendo sempre luta e resistência.[13]
Um fator importante para o desenvolvimento das insurreições está no fato de que muitos negros aqui desembarcados foram em suas regiões de origem experientes líderes militares, e esta fora a contribuição mais importante da herança africana que muitos escravos tinham, por ter a maioria prestado serviço militar nos exércitos de sua terra natal. A aristocracia africana e a cultura militar ajudaram a despertar a rebelião e a gerar a liderança.[14] Estes escravos que tinham a intenção de se verem afastados da vida no cativeiro em muitos momentos buscaram regiões inóspitas, algumas vezes atacando aqueles que se colocassem em seu caminho.[15] A maioria dos especialistas entende que os que procuravam a liberdade definitiva eram freqüentemente nascidos no continente africano.[16] Um exemplo deste desenvolvimento militar colocado em ação em terras americanas, foi o caso ocorrido em 1522 na América espanhola, quando escravos provenientes do reino Jalofo, atual Senegal, se revoltaram, e

Não só mostraram grande frieza ao enfrentar o ataque da cavalaria espanhola, abrindo fileiras e permitindo que o cavalo passasse por ela, girando então para fazer um contra ataque, como também criaram uma cavalaria própria e a usaram para devastar os engenhos de açúcar de Hispaniola nos anos de 1540.[17]


Táticas militares e planejamento estiveram ligadas não apenas a este acontecido com os escravos Jalofos,mas a muitas outras insurreições.  Em muitos dos casos já analisados pela historiografia, constatou-se forte poder de articulação e envolvimento de vários atores. Outro exemplo nos é apresentado por Lima. Trata-se do quilombo de Manoel Congo, em Vassouras, que teria existido e alarmado as autoridades fluminenses nos anos 30 do século XIX. Este quilombo e seus membros foram responsabilizados por vários saques e depredações a várias fazendas nas redondezas.  A mesma relata que

alarmados, os fazendeiros apelaram para o governo imperial, que lhes enviou um destacamento de tropas regulares comandado por Caxias. O ataque ao quilombo se deu no dia 11 de dezembro de 1838, constituindo verdadeira carnificina, pois não tinham os negros condições de reagir em pé de igualdade ás forças enviadas. A devassa referente ao movimento revelou um princípio de articulação entre seus membros, os quais haviam formado uma organização secreta suspeita de manter relações com os negros malês da Bahia, sublevados nesse período... A devassa instaurada desvendou reminiscências de organização tribal no movimento, cujos chefes, chamados “Tatetes Corongos”, procuravam congregar os negros na luta pela libertação. [18]

Movimentos como as revoltas dos Malês na primeira metade do século XIX na Bahia são outros exemplos de organização promovida por escravos.



[1] Idem, p.356.
[2] Ibdem. Op.cit, p.361.
[3] THORNTON, John Kelly, op.cit.p.360-365.
[4] SILVA, Eduardo. REIS, João José. Op.cit. p.64.
[5] AMANTINO, Marcia Sueli. Quilombos em Macaé no século XIX. Cadernos de ciências humanas – especiarias, volume 19, nº 18, jul – dez 2007, p. 634.
[6] Idem, p.635-642.
[7] FEYDIT, Júlio. Subsídios para a história dos Campos dos Goytacazes. São João da Barra. Gráfica Luartson, 2004, p.348-349.
[8] LARA, Silvia Hunold. Campos de violência. Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro 1750-1808. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1988.p.185-188.
[9] Escravo de ganho era aquele escravo que no período colonial e imperial realizavam tarefas remuneradas para outros senhores, alugando seus serviços e posteriormente repassando a maior parte de seus ganhos a seu dono.
[10] SCHWARTZ, Stuart. Op.cit.p.97.
[11] REIS, João José. SILVA, Eduardo. Op.cit.p.18.
[12] Ibdem, pp.356.
[13] LIMA, Lana Lage da Gama. Op.cit. p.20.
[14] THORNTON, John Kelly. Op.cit.p.364.
[15] Idem.p.364-365.
[16] Ibdem, p.365.
[17] THORNTON, John Kelly. Op.cit.p.381.

[18] LIMA, Lana Lage da Gama. Op.cit.p.34-35.

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