quarta-feira, 17 de agosto de 2011


       A igreja católica, a escravidão no Brasil e a rebeldia do negro

Na história de nosso país, temos o espectro da escravidão como fato marcante em seu trajeto, carro chefe de suas estruturas de desenvolvimento econômico e social, afinal foi em torno de 350 anos percorridos neste regime desumano que o Brasil se desenvolveu. A transferência forçada de africanos para nosso continente ocorreu indiscriminadamente. O número de pessoas escravizadas transferidas para a América ficou em torno de 15 milhões. Número este assustador, mas que se levado em conta que para cada pessoa que aqui chegava, segundo alguns especialistas, um número maior morria nos conflitos e caçadas na África, podemos imaginar que a coisa fora muito pior.
         A escravidão moderna que perdurou por estes longos séculos teve vários instrumentos de legitimação. O principal deles, o ideológico, tinha como agente propagador a igreja católica, que através de seus representantes procurava legitimar e definir os meios de manutenção do sistema. A expansão ultramarina dos séculos XVI e XVII possuia como um de seus motivos a propagação da fé cristã, que declarava justa, por parte da igreja, a subordinação dos Mouros e demais pagãos a escravidão perpétua.
         Entre os religiosos que se dedicaram ao trabalho de doutrinar a respeito da escravidão, apresentando justificativas morais cristãs para o suplício dos africanos, alguns se destacam.  "No final do século XVII, um jesuíta italiano residente na Bahia pregou aos senhores um longo sermão sobre as obrigações dos senhores para com seus escravos. O texto foi publicado em 1705 com um título diferente;” Economia cristã dos senhores no governo dos escravos". Este texto apresentava aos senhores as formas mais corretas para lidarem com seus servos de modo a não exagerarem nos castigos, não se embrutecendo demais, e nem acabando por desagradar a deus. O referido religioso chamava-se Jorge Benci, e descrevia da seguinte forma o que devia ser ofertado aos escravos para que se mantivessem mansos e obedientes. "O que os senhores devem dar aos escravos resume-se na seguinte fórmula: pão, disciplina e trabalho. O mesmo religioso procura descrever com certa minuciosidade o porquê de tais argumentos. O mesmo dizia que o castigo era para que não errassem em suas obrigações, e trabalho para que merecessem o sustento e para que não se tornassem insolentes perante seu senhor, e principalmente perante Deus.
          O famoso padre jesuíta André João Antonil, escreveu alguns anos mais tarde, que: “Costumam dizer que no Brasil para os escravos são necessários três Ps: Pão, pau e pano. Para este padre os escravos eram de fato as mãos e os pés do senhor, e para que tudo funcionasse bem era necessário que fossem vestidos, alimentados e castigados.
Outro padre, Manoel Ribeiro Rocha escrevera em 1758 que aos escravos deviam ser dados sustento, correção e instrução. A instrução serviria para que o escravo conhecesse a fé cristã. A correção seria para que os possuidores destes cativos pudessem através deste corrigir os seus erros. "Por que se o escravo for de boa índole, poucas vezes errará e para a emenda deles bastará a repreensão; mas se for protervo, ou travesso, continuadamente obrará mal, e será necessário para o corrigir que a repreensão vá acompanhada e auxiliada com o castigo."
 Padre Antônio Vieira (1608-1697), considerado o mais eminente de todos os padres que aqui aportaram, ensinava que os escravizados eram filhos do calvário, e seu sofrimento se assemelhava aos do próprio cristo crucificado. Joel Rufino dos Santos descreve em Nação Quilombo que Vieira pregou em certo domingo de 1633, que “não há trabalho, nem gênero de vida mais parecido á cruz e a paixão de cristo, que o vosso em um destes engenhos. Bem aventurados vós se souberes conhecer a fortuna do vosso estado, e com conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança aproveitar e santificar o trabalho”. (sermão décimo quarto de 1633).
         Vemos aqui que a violência era algo estrutural, legitimada pela igreja que era a detentora das ideologias da época. As correntes contemporâneas que defenderam a ideia de uma escravidão paternalista, em que a violência não tenha ocorrido em demasia não podem ter tido acesso a estes documentos, ou se o tiveram, agiram de má fé, já que fica claro que tais textos só foram publicados devido a uma violência excessiva para com o negro. Outros textos não utilizados aqui demonstram maiores atrocidades por parte dos senhores. Inúmeras foram às cartas e leis escritas e editadas no período colonial que retratavam a violência e a busca de meios para conter a insurgência dos escravos, que se organizavam e provocavam medo na boa sociedade. Um exemplo destas cartas foi à escrita no ano de 1814 e encaminhada pelo corpo do comércio de Salvador na Bahia, ao príncipe regente D.João VI que assim dizia:
É notório que há três ou quatro anos os negros tentam rebelar-se e matar todos os brancos, e tendo nos anos anteriores feito duas investidas, agora no amanhecer do dia 28 de fevereiro, em distância somente de uma légua desta cidade, deram a terceira com muito mais estragos e ousadia que as outras. Estes ensaios , senhor, bem prognosticam que chegará ( a não ser que se tomem medidas mui sérias) um dia em que eles de todo acertem e realizem inteiramente o seu projeto, sendo nós as vítimas de sua rebelião e tirania.”( GOMES,2010, pp.249).
O autor do referido texto foi José Antônio de Miranda que dizia ainda que “os escravos são sempre inimigos naturais de seus senhores e que devem ser contidos pela força e pela violência.” (GOMES, 2010, pp.250).
Em outro documento do ano de 1823 uma senhora dona de escravos na Bahia escrevera ao marido a respeito de petições escravas enviadas a corte portuguesa requerendo nada mais do que sua liberdade. O texto dizia o seguinte:
A crioulada de cachoeira fez requerimentos para serem livres. Em outras palavras, os escravos negros nascidos no Brasil ousavam pedir, organizadamente liberdade!(...) Estão tolos, mas a chicote tratam-se... (GOMES, 2010, pp250).
É possível constatar que bem antes das lutas abolicionistas os escravizados já se organizavam em busca de seus ideais de liberdade. Existem documentos que relatam lutas séculos antes das referidas aqui. No referido período, início do século 19 começava a haver um debate em torno do fim do tráfico de escravos e muitos grupos de escravizados se articularam em torno deste ideal.
O fim do tráfico negreiro e da escravidão conseqüentemente era algo inimaginável para os senhores da época. Raro era encontrar alguém que se opusesse ao regime e o visse com indiferença. Entre os vários acordos assinados entre D.Pedro I e o governo da Inglaterra, há um 1826 que previa o fim do tráfico negreiro. Este não fora o primeiro que prometera isto. Tal acordo suscitou enormes críticas dos escravocratas e seus representantes parlamentares. Um deles, o deputado goiano Raimundo José da Cunha Matos disse justificando que “os cristãos que compravam escravos estavam na verdade livrando-os de algum mal maior na África”. Suas palavras eram praticamente um consenso entre seus pares.
Podemos ver nas citações de documentos acima que havia enraizado na mente da sociedade da época a necessidade da mão de obra escrava para movimentar a economia. Vemos também que escravizados não estiveram passivos e nem que fora um cativeiro brando e paternalista.
Acreditar em uma atitude passiva e totalmente desorganizada por parte dos escravos em sua totalidade, e benevolente e paternalista por parte dos senhores é desconhecer o cotidiano do período da escravidão brasileira. Embates aconteceram de diversas formas, e quando atentavam contra a vida de seus senhores, estes escravizados nada mais faziam do que buscar resguardar suas próprias vidas. Muitos outros acontecimentos organizados foram protagonizados pelos escravizados, que mesmo que lentamente, ajudaram a sua maneira a desorganizar e ou modificar as estruturas do sistema colonial brasileiro. Estas lutas continuam até os dias de hoje, visto que, de certa forma a “liberdade” trouxe poucos benefícios e nenhuma igualdade social para os ex-escravos e seus filhos.
                                                                                                  Alex Grijó.

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