terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Dionísio domesticado.




                           
Dionísio, mais conhecido como Baco, era um deus bastardo. Perambulou por muito tempo pela Ásia Menor até que, pelas mãos do sacerdote Melampo, introduziu-se nas terras gregas. Virou um sucesso. Conforme as plantações de parreiras se espalhavam pelas ilhas e pela Arcádia, mais gente o celebrava. Por essa altura, já como deus das vindimas, representavam-no como uma figura humana de chifres, barbas e pés de bode, com um olhar invariavelmente embriagado. Consta que suas primeiras seguidoras, há uns 3 ou 3,5 mil anos atrás, foram mulheres que viram nos dias que lhe eram dedicados um momento de escaparem da vigilância dos maridos, dos pais e dos irmãos, e caírem na folia “em meio a danças furiosas e gritos de júbilo”, como disse Apolodoro. Os homens, transfigurados em silenos e sátiros, não demoraram em aderir às procissões e ao “frenesi dionisíaco”. A festança que se estendia por três dias, encerrava-se com uma bebedeira em meio a um vale-tudo pansexualista.

Nos primórdios do culto, as autoridades (as cortes, os sacerdotes e os ricos) não gostaram nada daqueles festejos malucos. Entre outras razões porque eram as vitimas favoritas das sátiras. Os festejos bacantes, como é sabido, serviam como um acerto de contas do povo com os seus governantes. Neles o miserável vestia-se de rei, o libertino como guia religioso, e a rameira local posava como a mais pura donzela, e assim por diante. Dionísio, brincalhão e debochado, estimulava que virassem o mundo de ponta-cabeça.

A repressão fracassou. Foi então que no século 6 a.C., Pisístrato, o tirano de Atenas oficiou-lhe homenagens. Não só isso. Construiu-lhe um templo na Acrópole: o teatro Dionísio, que está lá até hoje. Organizou em seguida concursos de peças cômicas ou trágicas para celebrá-lo no placo, iniciando assim o amparo das artes cênicas pelo estado.

Erwin Rohde, um colega de Nietzsche, interpretou a transformação de Dionísio de um irreverente deus das folganças num ente oficioso, à interferência de um outro deus: Apolo. O deus Sol, deus do Estado, não podia permitir que aquela subversão dos costumes ficasse solta pelos campos a provocar loucuras, incitando o pobrerio. Atraiu-o então para dentro da cidade e, como sócio maior, domou-o. Em Roma, com as saturnais, as incríveis e desregradas festas populares que se davam em dezembro deu-se praticamente a mesma história.

O nosso carnaval, trazido pelos portugueses no século 17, é um herdeiro direto das bacantes e das saturnais greco-romanas e percorreu a mesma trajetória de acomodação. A nossa plebe imediatamente aderiu ao entrudo como um imperdível momento de inverter, ainda que simbolicamente, o mundo desgraçado em que vivia. Naqueles dias tão aguardados, quando a troça assumia ares de majestade, nenhum fidalgo ou pomposo, nada de solene ou sublime, escapava da mordacidade dos festivos. Aqui também Apolo interviu. Gradativamente, a partir de 1935, com o centralismo estatal, sufocou-se a salutar espontaneidade popular com regulamentos e com horários. Seduziram Dionísio com promessas de honrá-lo em lugares especiais (Sambódromos ou equivalentes), acertando em troca o fim da zombaria e do ridículo em que submetia os poderosos. Faz tempo que as Escolas de Samba enfiaram-se numa camisa-de-força. Caíram na armadilha de Apolo. Para exibirem-se obedientes às normas exigidas precisam de dinheiro. Este só se encontra entre os figurões; públicos ou privados. Os sambas-enredo, esvaziados da irreverência e da gostosa safadice, não dizem mais nada. Comumente são elogios. O luxo das fantasias e a parafernália dos alegóricos cerceia qualquer gesto mais solto ou original. O resultado é a mesmice. Quem assiste a um só desfile viu a todos. Os que passaram e os que ainda virão. Domesticaram Dionísio!
fonte:educaterra

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