quinta-feira, 13 de setembro de 2012

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA REBELDIA NEGRA...


      O Brasil foi um dos primeiros países americanos a conhecer a escravidão e o último a aboli-la.[1] Durante quase quatrocentos anos, indígenas, e posteriormente negros africanos, foram utilizados como instrumentos de produção de riquezas, através da exploração de sua força e energia. Segundo Emilia Viotti, a escravização do homem negro africano foi à fórmula encontrada pelos europeus para a colonização do novo mundo.[2] No caso do Brasil, constituído como um apêndice da metrópole portuguesa, incorporado ao novo circuito econômico como uma economia voltada para a agro-exportação, era preciso atender a demanda daqueles que para cá vieram se instalar e produzir gêneros variados, além de explorar os recursos existentes. Para isto, fazia-se necessário um vultoso contingente de braços para o trabalho nas lavouras, que de acordo com Florestan Fernandes seria utilizado como uma modalidade de energia que podia ser concentrada e utilizada intensivamente através da organização social do trabalho escravo como se o organismo humano fosse uma máquina.[3]                       

Não se sabe ao certo, várias são as estimativas, mas calcula-se que tenham entrado em nosso território algo entre três e cinco milhões de pessoas vindas de muitas regiões do continente africano, fato que ficou conhecido como “diáspora africana”, e que acabará por produzir uma simbiose de culturas em nosso país.[4] Deve-se enfatizar que não foram “africanos” que vieram para a América, mas sim diversos povos de um imenso continente chamado África, com diferenciações extremas entre si, e por isto não é possível generalizá-los como africanos de um modo geral. Também devido a isto, a escravidão no Brasil não pode ser vista como um fato homogêneo, que teria ocorrido da mesma forma em todo o tempo histórico e em todas as regiões em que se estabeleceu, e sim como um fenômeno multifacetado, em que várias adequações e particularidades tiveram espaço. Da mesma forma o homem e a mulher africana não podem ser vistos como tem sido, ora como “herói”, que luta, comanda revoltas, desafia seu senhor e cria seus ajuntamentos chamados quilombos, e muito menos como o conhecido “preto velho”, ou a “mãe preta” subservientes, passivos e obedientes a todas as ordens de seus senhores. É claro que ambos os sujeitos existiram e coexistiram. Mas estes estereótipos não apresentam o período e seus atores de forma clara. Autores como Fernando Henrique Cardoso e Jacob Gorender escreveram trabalhos em que defendiam teses em que o escravo era colocado e se via propriamente como “coisa”.[5] Um fato que pode ir contra tais preposições e que se pode entender como uma demonstração onde os negros não estavam tão passivos assim, e nem se posicionando como “coisas”, fora a criação da lei nº4 de 10 de junho de 1835, que determinava a punição de todo escravo que viesse a atentar contra a vida de seu senhor com a pena de morte.[6] Tal lei só poderia ter sido editada devido à forte luta dos escravos por sua liberdade, acabando por atentar contra a vida de seu senhor. Enfatizo que no momento da criação de tal lei, os abolicionistas e todas as vozes que se voltaram contra o nefasto regime ainda não se faziam ouvir.

 Estudos produzidos principalmente a partir da década de 1970, como os de Ciro Cardoso, Kátia Matoso, Flávio Gomes, Robert Slenes e Sidney Chalhoub têm mostrado um universo muito mais complexo que aquele descrito e estudado por vários Historiadores anteriores a este período. Sheila de Castro Faria em “A Colônia em movimento” ao analisar a história das famílias, a dinâmica de áreas rurais e a expansão das atividades econômicas, relata que nestes estudos os negros vêm surgindo como agentes históricos, mesmo que com certo desprestígio.[7]

 Estes autores concordam que não é mais possível imaginar o período da escravidão com o homem negro preso a correntes e vigiado o tempo inteiro, mesmo sabendo que este fato ocorreu, e que o homem negro fora alvo de inúmeras atrocidades cometidas ao longo da maior parte de nossa História. A violência do regime não pode ser contestada. A questão é que não tivemos apenas estes fatos. Como bem observa Chalhoub quando relata que a “violência da escravidão não transformava os negros em seres incapazes de ação autonômica, nem em passivos receptores de valores senhoriais, tampouco em rebeldes valorosos e indomáveis.[8]

 Em recentes pesquisas, dentre estas as de Chalhoub, emerge uma nova visão do comportamento escravo e da rebeldia e posicionamento dos mesmos diante das adversidades. Estes estudos têm demonstrado que estas resistências devem ser entendidas não como “passivas”, mas sim como “uma das faces das complexas lutas vivenciadas pelos escravos e que de acordo com Flávio Gomes passou a haver uma contestação das concepções que viam as relações senhor/escravo marcadas tão somente por uma visão paternalista da escravidão. [9] Há uma maior ênfase na descrição dos quilombos e seus líderes de caráter revolucionário com maior consciência de suas ações, além da análise de outras formas de resistência, como determinadas negociações buscando melhorias em sua vida cotidiana, que até então foram descritas como passivas e de caráter histórico desmerecido e que tinha como contraponto a reelaboração permanente das relações com seus senhores”.[10]

O que se pode entender destas formas de resistência, é que através delas, os escravos buscavam se reconstituir como pessoas, alterando, modificando e adequando a dominação senhorial na tentativa de reconstruírem suas vidas. Trata-se de novos meios para enfrentar o sistema, que não se limitou a insurgências e fugas. Gomes relata, por exemplo, que negros escravos no Caribe estavam muito bem informados a respeito das discussões no parlamento inglês,e tentavam na medida do possível, tirar proveito de tal situação, a partir de suas próprias lógicas”.[11]

Outra ideia difundida e muito questionada, e que tem na obra de Gilberto Freire, “Casagrande e senzala” sua principal argumentação, é a da ideia de paternalismo e benignidade da escravidão, com uma relação muito próxima, e muitas vezes promíscua entre senhor/escravo. Tal visão tem sido alvo de inúmeras críticas nos anos que sucederam a sua publicação (1930), provocando vários debates. Podemos afirmar que as pesquisas dos autores citados anteriormente não demonstram tal paternalismo. Estas pesquisas citadas buscam dar voz a estas pessoas escravizadas, apreendendo discursos e argumentos para compreender sua percepção diante do cativeiro. Chalhoub acrescenta que

 

o mito do caráter benevolente ou não violento da escravidão no Brasil já foi sobejamente demolido pela produção acadêmica das décadas de 1960 e 1970 e, no momento em que escrevo, não vejo no horizonte ninguém minimamente competente no assunto que queira argumentar o contrário. [12]

 

 Não é pretensão deste trabalho aprofundar-se nesta questão. E sim apresentar aspectos pouco conhecidos de um período ainda obscuro para a maioria dos brasileiros sobre a escravidão brasileira. Trata-se da tentativa de discussão a respeito do posicionamento do negro perante o cativeiro, uma análise que tentará mostrar as ambiguidades do sistema escravista brasileiro e que o caráter paternalista e benevolente, muito questionado nas últimas décadas, não seria definidor da relação senhor e escravo.  Entendo que para que possamos ter uma visão ampla do assunto, nos seria necessário “ouvir” todos os lados da questão, não apenas consultando documentos de época, ou os textos produzidos por senhores escravocratas, ou por autores impregnados com o pensamento de seu tempo, mas também os produzidos pelos escravizados. Sabemos que se torna difícil tal análise tendo em vista que a praticamente a totalidade dos escravizados estava à margem da sociedade e a estes era negado qualquer tipo de direito, e o letramento estava entre estes. Para se ter um ideia, a proporção de escravos que foram alfabetizados no século XIX ficava em torno de um para cada mil.[13] É sabido que em nossa História, educação foi, e tem sido algo reservado aos homens mais bem situados da sociedade, e nos períodos de colônia e império era destinado aos chamados homens “bons”. Logo, a produção de textos pelos escravizados é algo muito difícil de ser encontrado. Mas como acabo de dizer, difícil, e não inexistente. Um em especial, e que irei apresentar, é o tratado proposto por escravos do engenho de Santana em Ilhéus, no estado da Bahia no ano de 1789.[14] Neste tratado fantástico, escravos negociam, fazem imposições, delimitam seu terreno, se diferenciam entre si, apresentando uma proposta de como se poderia conseguir a “paz” entre os dois grupos divergentes (senhor/escravo) dentro do mesmo espaço de convivência. Trata-se de um claro exemplo em que podemos visualizar os escravizados não se colocando como passivos ou indolentes, mas buscando inúmeras estratégias, articulando, tramando, readaptando-se a novas formas de convivência, buscando produzir um novo ambiente, uma nova forma de relacionamento entre “opostos”, ora transgredindo, ora cedendo, buscando resguardar tradições, cultos e acima de tudo, a própria sobrevivência. Dentre as reivindicações, estava a que visava conseguir um pedaço de terra para poderem plantar em proveito próprio e comercializar sua produção. Esta reivindicação de um lote de terra para plantar em proveito próprio e obterem lucros, ficou conhecida como “brecha camponesa”, que se constituía em uma economia própria dos escravizados, em que podiam plantar suas roças e venderem seu excedente, e através disto obter uma série de benefícios, não apenas para os mesmos, mas também para seus senhores.[15] Gomes diz que a questão foi comum no Brasil, e que além de terras, escravos tinham o costume de possuir gado.[16]



[1] MAESTRI, Mário. O escravismo colonial/São Paulo: Atual, 1994, pp.5.
[2][2] VIOTTI, Emília. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II – O Brasil monárquico, Bertrand Brasil, 2004, pp.135.
[3] IANNI, Octavio. Florestan Fernandes/ – 1ªedição, São Paulo: Ática, 2008, pp.230.
[4] Clóvis Moura nos diz que na América, o Brasil foi o país que teve a maior percentagem de escravos desembarcados. Segundo Décio Freitas, importamos cerca de 40% do total de 9.500.000 negros (segundo suas estimativas) transportados para o novo mundo entre os séculos XVI E XIX. Para maiores esclarecimentos ver: MOURA, Clóvis. Quilombos. São Paulo: Ática, 1993, pp.7.
[5]Para Gorender” o primeiro ato humano do escravo é o crime, desde o atentado contra seu senhor á fuga do cativeiro. ”Já F.H.C. dizia que “embora fosse capaz de empreender ações humanas, exprimia, na própria consciência e nos atos que praticava orientações e significações sociais impostas pelos senhores.” Apud: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.p.38-42. 
[6] [6] Lei nº4 de 10 de junho de 1835. In: WWW.planalto.gov.br acessado em14 de agosto de 2010.
[7] FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.pp.290.
[8] CHALHOUB, Sidney. Op.cit, pp.43.
[9] GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995,pp.17-19.
[10] Idem, pp.30-31.
[11] Ibdem, pp.17.
[12] CHALHOUB, Sidney. Op.cit. p.35.
[13] REIS, João José. SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência escrava no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp.16.
[14] Tratado proposto a Manoel da Silva Ferreira pelos seus escravos durante o tempo em que estiveram aquilombados. Este documento foi publicado por Stuart Schwartz em “Escravos, roceiros e rebeldes”, EDUSC, 2001, pp.119-121.
[15] CARDOSO, Ciro Flamarion S. Escravo ou camponês? : o protocampesinato negro nas Américas. – São Paulo: Brasiliense, 2004, p.73.
[16] GOMES, Flávio. Op.cit, p.67.

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