quinta-feira, 26 de maio de 2011

  Uma breve História da escravidão: África e Europa.

Se há uma coisa que se encontra interligada no pensamento da maioria das pessoas quando se fala em escravidão, é a associação desta com a África e o homem negro, como se este sistema de trabalho tivesse se iniciado e somente existido por conta daquele, e naquele continente. Trata-se de um grande erro, que é parte integrante do imaginário da maior parte das pessoas. O fato é que a escravidão existe desde tempos remotos, e foi muito difundida na antiguidade, tanto na Eurásia, quanto na África. Na Europa podemos citar a Grécia antiga e principalmente o Império Romano, como povos que tinham este regime vinculado as suas práticas cotidianas. Sobre esta utilização de mão de obra escrava, e não especificamente negra na Europa, e um fato marcante na história da humanidade que fora a crise do Império Romano, Maestri revela que,

não foram as invasões bárbaras que puseram fim ao império romano. A produção escravista romana entrou em crise devido á sua incapacidade de evoluir, de pequena produção rural mercantil, para grande produção mercantil. A produção escravista romana foi incapaz de organizar, no fim do império, nas grandes propriedades nascidas da concentração da terra nas mãos de alguns poucos proprietários, grandes latifúndios agrícolas escravistas que produzissem mercadorias para o mercado.[1]


Esta produção escravista Romana não era necessariamente constituída por mão de obra negra africana. Boa parte da escravaria de Roma era proveniente da Própria Europa; logo, escravos não africanos.
Para termos uma ideia de como o comércio de escravos pode ter seguido um caminho diferente daquele que conhecemos, que se dirigia da África para a Europa, a informação de Maestri de que no começo do século XVII, cerca de 250 mil europeus viviam como escravos na África do norte é extremamente reveladora.[2] Esta afirmativa demonstra que o fluxo de escravos em determinados momentos da história seguiu caminho inverso, indo da Europa para África. Os gregos que também já utilizavam a escravidão, e esta se via inserida em seu cotidiano sendo definida por leis, tinham nas obras de seus grandes pensadores como, por exemplo, Aristóteles (384-322 a.C.) sua afirmação ideológica. Este filósofo em uma de suas principais obras nos diz que há na “espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação á alma... Partindo dos nossos princípios, tais indivíduos são destinados, por natureza á escravidão; porque, para eles, nada é mais fácil do que obedecer”.[3] Em “A política”, Aristóteles não faz menção ao negro africano. Este filósofo ao descrever a escravidão e o escravo, em nenhuma página cita diretamente o negro. A escravidão no mundo antigo e neste período em que este autor escreve se insere em um momento em que as relações entre estes continentes - África e Europa- ainda não haviam se estreitado.[4]Logo, a difusão da relação entre a África e a escravidão, assim como o negro e o cativeiro são criações “modernas”, bem mais recentes, que devido à legitimação de um sistema, fez-se necessário povoar o imaginário social com a “certeza” da aptidão dos povos africanos para o trabalho escravo e de sua “inferioridade” como “raça”.
Quando falo de criações modernas, não quero dizer que a escravização de pessoas naquele continente seja posterior ao século XVI. A ocorrência da escravidão na África é anterior a chegada dos europeus. O que ocorre é que a partir da intensificação dos contatos com os mercadores da Europa, este sistema será ampliado em uma escala superior. A escravidão na África, assim como em várias outras regiões do mundo, existiu por muitos séculos e razões diferentes. Os motivos para levar uma pessoa ao cativeiro poderiam variar de época e lugar. Em África, Inimigos derrotados eram convertidos em escravos, bem como pessoas endividadas ou condenadas por crimes.[5] Neste continente, ao contrário da Europa, os cativos eram a única forma de propriedade privada lucrativa reconhecida pelas leis locais. Diferentemente na Europa era a posse de terras a principal forma de propriedade privada geradora de lucros, e por este motivo a escravidão ocupava uma posição inferior.[6] Esta mesma diferença que colocava o escravo como forma de produção de riquezas, foi um dos fatores que levaram a disseminação da escravidão na África. Podemos dizer que África e Europa possuíam sistemas diferentes sem que se possa dizer que o sistema social africano fosse inferior ou retrógrado ao europeu, mas somente legalmente divergente.[7]
Entre estes dois sistemas, a escravidão clássica e a moderna, encontraremos mais diferenças do que similaridades, mas o cerne do sistema que era a privação de liberdade será uma constante em ambos.[8]
 A partir de 1650 o comércio de escravos na África tende a ter um maior desenvolvimento por conta da intensificação dos contatos com os europeus, que passam a forçar os africanos a exceder sua capacidade de fornecimento de cativos, num momento em que as colônias da Europa na América passaram a necessitar cada vez mais de mão de obra para sua produção agrícola nas regiões caribenhas.[9] Este aumento na intensidade do tráfico provocou uma diminuição demográfica no continente já no fim do século XVIII. O inverso desta diminuição fora a presença maciça de africanos nas Américas, que passaram a ter uma influência importante no desenvolvimento do chamado novo mundo. 
Esta presença fica evidente quando analisamos a economia americana, que teve como base na maior parte de sua história a utilização da mão de obra negra africana escravizada, que por conseqüência trouxe influências culturais que ajudaram a moldar a religião, a filosofia, a culinária, a língua e a própria aparência a partir da grande miscigenação ocorrida entre europeus, indígenas e os próprios africanos. A atuação destes como força de trabalho foi crucial para delinear sua influência no mundo atlântico. [10] Com relação a estas influências na cultura americana, Thornton nos diz que os africanos tiveram-na em grau superior a dos nativos da América.[11]
1.2. Os povos africanos na América
Com a chegada deste grande número de pessoas para trabalhar nas diversas “empresas” coloniais, os conflitos próprios de um regime que tem por pressuposto a violência e a negação do outro como ser, começam a se disseminar.[12] Quando se fala em conflitos e revolta escrava, logo pensamos em turba, desordem, fuga para longínquas paragens, canaviais queimando, e nos famosos ajuntamentos chamados quilombos, que existiram nos quatro cantos das Américas. Entretanto, durante o período em que vigorou a escravidão moderna, houve momentos em que os cativos se utilizaram da violência, e esta foi levada ao extremo, e outros que conseguiram encontrar soluções criativas para a resolução de seus problemas. As condições a que eram submetidas estas pessoas as levava a tomar variadas decisões em busca da recuperação de sua liberdade e da própria dignidade. O Historiador norte americano Stuart Schwartz analisou o viver escravo, a vida nos engenhos, as formas de resistência e as famílias escravas no Brasil. Para ele os novos estudos “tem pecado ao deixar em segundo plano a análise da vida no cativeiro, que segundo o mesmo, servia de pano de fundo para todos os seus atos e restrições a suas vidas.” [13] Além disso,

A variedade de requisitos para o trabalho era o elemento principal que determinava a natureza da vida dos escravos, pois definia os níveis de expectativa do proprietário e organizava as prioridades dos escravos. Em resumo, quem trabalhava na pecuária e vivia em relativo isolamento tinha oportunidades diferentes daqueles que trabalhavam em grupos nas minas de ouro ou daqueles que trabalhavam na lavoura de cana de açúcar.[14]


Ademais Schwartz argumenta que em determinadas áreas e tipos de produção a vida dos escravos era muito mais dura, e isto pouco lhes proporcionava com relação a expectativas de melhora. Diferentemente de escravos que viviam nas cidades ou locais em que a produção não exigisse um trabalho tão desgastante como, por exemplo, em uma lavoura de algodão. Estas especificidades influenciavam nas medidas tomadas pelos escravizados com relação a suas vidas. Alguns poderiam obter determinados “privilégios” e por conta destes, acabarem se acomodando com sua situação. No entanto estes casos não eram os de maior proporção, e isto levava estas pessoas a se rebelar.
 A mais conhecida das formas de rebeldia, e que realmente se destacou fora de fato à fuga e a conseqüente formação dos quilombos. Isto ocorreu desde a chegada dos primeiros africanos ao Brasil.[15] Os quilombos alarmavam e preocupavam as autoridades desde meados do século XVI, tanto que propiciou no ano de 1699, a isenção de punição para aquele que matasse um escravo fugitivo no momento de sua captura. No ano de 1701 os famosos caçadores de negros fujões, conhecidos entre outros nomes, como capitães do mato, recebem concessão que será regulamentada em 1724, um prêmio de seis oitavas de ouro por cada cabeça de negro aquilombado morto em combate.[16] Apesar destas perseguições e da violência a que eram submetidos os negros recapturados, os quilombos não deixaram de se reproduzir.
De acordo com Lima, os negros apesar de buscarem lugares de difícil acesso para se esconderem, não procuravam se afastar tanto assim, por necessitarem do contato com povoações para a aquisição de gêneros que não pudessem produzir. Os mesmos se utilizavam tanto de roubos quanto de negociações para esta aquisição. Quando se faz alguma referência a quilombos, a primeira coisa que nos vem à cabeça é Palmares e seu conhecido líder Zumbi. Este foi o maior de todos, tanto no que diz respeito à duração quanto à extensão e número de habitantes. Ainda segundo Lima, o mesmo já existia por volta de 1602-1608 e sua queda só se dará em 1694.[17] Moura nos diz que, “Palmares foi à maior manifestação de rebeldia contra o escravismo na América Latina e durante seu período de duração desestabilizou regionalmente o sistema. [18] Diferentemente desta opinião, Lima relata que os quilombos não ameaçavam o sistema, mas ocasionavam certo desgaste ao seu funcionamento causando-lhe sérios prejuízos materiais; não tanto por suas investidas contra os povoados ou por recursos desviados, mas pelo grande número de negros que mantinham afastados do processo produtivo.[19]
  O que estas pessoas buscavam era de fato uma reordenação no sistema ao qual estavam inseridas de forma extremamente desfavorável. Por não se conformarem com sua situação, buscaram meios de mudanças no rumo de suas vidas. Sabe-se que a condução do destino de uma pessoa escravizada é anulada ou reduzida ao limite, mas mesmo assim, em muitos momentos os mesmos conseguiram obter mudanças significativas em suas relações, e ajudar, mesmo que lentamente, a desestruturação do sistema escravocrata. Thornton nos revela que em condições difíceis,

sempre há pessoas, quer exploradas, quer privilegiadas, que não vêem como mudar ou melhorar sua sorte seguindo as regras do sistema. Essas pessoas procuram ir além das circunstâncias que a escravidão lhes impõe e exigem mais do que seus donos ou governantes estão dispostos a dar lhes por livre vontade. Esses descontentes eram os resistentes, os rebeldes ou os fugitivos. Cada um a seu modo e de acordo com seus próprios meios, procurava alterar o sistema e suas regras.[20]


[1] MAESTRI, Mário. Op.cit.p.8.
[2] Idem.p.10.
[3] ARISTÓTELES. A política. São Paulo. Editora Escala.s/d, pp.19.
[4] THORNTON nos diz que as intensas navegações no início do século XV levaram a interação de quatro continentes quando antes havia pouca ou nenhuma comunicação. THORTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico, 1400 – 1800/Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.p.41.
[5] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009.p.195-198.
[6] THORNTON, John Kelly. Op.cit, p.123 – 125.
[7] Idem. Op. cit.p.127.
[8] FLORENZANO, Maria Beatriz B. O mundo antigo: Economia e sociedade (Grécia e Roma) São Paulo, Ed. Brasiliense, 1986, p.68-71.
[9] THORNTON, John. Op.cit, p.174-175.
[10] Idem, p.190-191.
[11] Ibdem, p.191.
[12] Utilizo o termo empresa, não como o que conhecemos hoje no mundo capitalista, mas na forma mais ampla da palavra, que pode significar empreendimento ou o que se empreende. Ver: Minidicionário LUFT, Ed. Ática, São Paulo, 2001, p.267.
[13] SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, EDUSC, 2001, p.89.
[14] Idem, pp. 90.
[15] LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra e abolicionismo. -Rio de Janeiro: Achiamé, 1981, p.17.
[16] Idem, p.28 - 29.
[17] Ibdem, p.30.
[18] MOURA, Clóvis. Quilombos. Resistência ao escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1993, pp.38.
[19] LIMA, Lana Lage da Gama. Op.cit.p.33-34.
[20] THORNTON, John Kelly. Op.cit.p.355.

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