sexta-feira, 22 de abril de 2011

Os americanos do norte e o terrorismo, segundo Tariq Ali.

"[...] existe o fundamentalismo imperial, e no seu núcleo está o país mais religioso do mundo. [...] Muito mais pessoas aqui acreditam na deidade do que em grandes partes do mundo islâmico." (A nova face do império, p. 163)


O desatento leitor poderia pensar que a frase acima se refere a algum país árabe. Mas não, ela diz respeito aos Estados Unidos da América, onde 60% da população acredita em Satã, e 89%, em divindades. Por apontar este tipo de ambigüidade, o paquistanês Tariq Ali já foi acusado de apoiar o terrorismo e ser contra a democracia. Ali é ateu e critica o fundamentalismo islâmico responsável pela propagação de atos terroristas, assim como critica os governos ditatoriais árabes que agem sob o jugo americano, como o Egito, a Jordânia e a Síria. O que ele garante defender é o direito dos povos oprimidos da região à resistência. Para Tariq Ali, somente com a compreensão do que leva pessoas a sacrificarem suas vidas em nome de Deus ou da Nação é que se poderá interromper o processo.
 

No livro recém-lançado,
 A nova face do império (Ediouro), Tariq Ali trata destes temas e da situação global em sete entrevistas concedidas ao americano David Barsamian entre 2001 e 2004. A invasão do Afeganistão e do Iraque, a situação do Paquistão, os governos colaboradores, a complexa situação entre Palestina e Israel são os principais temas discutidos, e para isso Ali recorre à rica história árabe no último século, assim como busca paralelos e comparações na milenar história da cultura islâmica e seus contatos com a cultura cristã e judaica. Editor da New Left Review, importante periódico acadêmico de esquerda, Tarq Ali é também historiador, dramaturgo, cineasta, ativista político e romancista. Autor dos livros de não-ficção Confronto de fundamentalismos (Record) eBush na Babilônia (Record), escreveu também o "Quarteto islâmico", onde busca, através da literatura, recontar a história da cultura islâmica. São eles Sombras da romãzeira (1992),O livro de Saladino (1998), Mulher de pedra (2000) e Um sultão em Palermo, este último lançado em Parati, onde o escritor esteve para participar da Flip. Foi lá que o Portal Literal conversou com ele, junto com outros jornalistas, sobre vários assuntos, como o desastre no Iraque, o ataque de Israel ao Líbano, a participação do Brasil no Haiti, a situação na América Latina. 

O mundo mudou muito do momento em que John Lennon compôs "Imagine" e lhe telefonou para pedir a sua opinião até hoje, passados 40 anos?

Tariq Ali. Basicamente, a grande diferença é que hoje temos uma situação em que os Estados Unidos são a única potência imperial no mundo. Quando os Estados Unidos invadiram o Vietnã, nenhum país europeu mandou tropas, quando eles intervieram no Iraque, muitos países enviaram tropas. Esta é a diferença na posição dos Estados Unidos. E isso gerou uma ideologia global que está se tornando cada vez mais difícil de ser desafiada. O Consenso de Washington tem dois aspectos gerais: primeiro, que as únicas políticas econômicas permitidas são as neoliberais. E segundo, que as soberanias nacionais não importam mais, quando necessário, os Estados Unidos vão passar por cima dela em nome das assim chamadas "intervenções humanitárias". E fazem isto em nome de uma suposta criação da base para a democracia nestes países. 

Hoje, há pouca diferença entre os chamados de centro-direita e de centro-esquerda. Pouco antes das eleições presidenciais no Brasil, em 2002, estive numa feira literária em Ribeirão Preto e me perguntaram, caso eu fosse brasileiro, em quem votaria. Disse que votaria em Lula, é óbvio, mas tive que confessar uma preocupação: Lula será eleito pela maioria dos pobres no Brasil, mas vai seguir os interesses dessas pessoas que votaram nele ou os que não o elegeram, como o FMI, o Banco Mundial, os Estados Unidos? Eu disse que esperava que ele seguisse os interesses dos pobres, mas muita coisa poderia acontecer. E podemos ver uma semelhança com a Grã-Bretanha. Se você pega o que Fernando Henrique Cardoso seguiu, é muito similar às políticas de Margaret Thatcher, e quando a centro-esquerda chegou ao poder, foi dada continuidade a este programa, com Tony Blair lá e Lula aqui. Diferentes países, diferentes circunstâncias, mas maneiras similares de agir. Então temos um problema em escala global, os países estão assustados e não se levantam contra o poder imperial dominantes. E os países que denunciam o imperialismo são chamados de terroristas, populistas, autoritários.
 

Outro ponto é que este sistema faz com que os políticos tornem-se muito dependentes das corporações globais de mídia, porque o contato direto com a população depende do que é mostrado na televisão, das campanhas de propaganda, e isso é muito importante. Esta é a grande diferença dos anos 1970. Nos 70, me lembro muito bem, um jornalista americano filmou os soldados americanos queimando uma casa no Vietnã e, na mesma noite, isso foi mostrado na televisão. Se você comparar com a cobertura que está sendo dada no Líbano hoje em dia, nenhuma das redes de tevê norte-americanas, incluindo a televisão pública [PBS], e muito menos a Fox News, tem mostrado qualquer imagem de mortes de civis ou crianças atingidas no país. Quando se tem uma situação em que as notícias estão sendo deliberadamente escondidas da população americana, então não podemos esperar que estes cidadãos saibam o que está acontecendo.

Eu acompanho muito os Estados Unidos, o que não faço regularmente com o Brasil, mas acompanho também a política brasileira. Preocupo-me quando o Brasil decide enviar tropas ao Haiti, em ajuda aos Estados Unidos, um general brasileiro no comando comete suicídio e o segundo general renuncia. Por que fizeram isso? Porque estavam pedindo a eles que matassem pessoas pobres. E os generais brasileiros mostraram mais decência e caráter que os políticos, por não aceitar fazer isso. Estamos em um mundo dominado, onde há pequenos bolsões de resistência, de pessoas tentando lutar contra isso.

O apoio a George Bush nos Estados Unidos vem caindo consideravelmente. Mesmo entre pessoas que não acompanham a política regularmente parece que há uma motivação neste sentido. 

Tariq Ali. A principal razão para isto é o desastre no Iraque. Os governantes americanos fizeram crer que seria rápido e simples e que a população iria apoiar a iniciativa de retirar o "homem mau", colocar um "homem bom" em seu lugar e depois sair do país. Nunca pensaram nem previram que haveria uma resistência, e esta resistência vem causando um número cada vez maior de baixas americanas, incluindo muitas mortes e soldados gravemente feridos. Isso está se disseminando por baixo das notícias, porque toda pequena cidade tem alguém que morreu ou foi gravemente ferido no Iraque. E na verdade eles sabem agora que o governo mentiu para eles. Ele mentiu sobre as armas de destruição em massa, isso foi publicamente admitido e teve um forte impacto na popularidade de Bush. E a aprovação de Tony Blair na Grã-Bretanha também está muito baixa, muitas pessoas dizem abertamente que querem que ele deixe o governo. 

Falando em bolsões de resistência, como vê o Fórum Social Mundial do qual participa? Ele é representativo em escala global ou isso é uma ilusão do Brasil, já que o sediou várias vezes?

Tariq Ali. Ele começou no Brasil, em Porto Alegre, o que foi muito importante. Mas agora acontece em todos os continentes. No começo do ano houve um Fórum Social Mundial no Paquistão, na África e na América Latina, em três continentes ao mesmo tempo. Na verdade, está crescendo, mas temos que ser muito honestos, eu freqüento muitos destes fóruns, é preciso ter cuidado para saber quais são os seus limites. Porque, no momento, estão se tornando uma festa e o mundo precisa de algo mais que uma festa, mais do que apenas gritar que outro mundo é possível, o que viemos fazendo por muitos anos e está se tornando monótono. O importante é saber como as coisas estão mudando, onde estas mudanças estão acontecendo e o que podemos tirar disto. Nesse sentido, os principais movimentos políticos que estão tendo grande impacto são da América Latina e pode ser vistos em quase todos os países da região. Enquanto estamos conversando aqui, a Cidade do México é ocupada por mais de um milhão de pessoas, porque o principal partido de esquerda acredita que a eleição foi roubada. Então há essa ocupação massiva da Cidade do México e o que exigem é muito simples: recontar cada voto. Como alguém pode se opor a isto? É uma demanda da democracia. Tivemos eleições na Bolívia e no Peru e, independentemente de quem ganhou, é a mesma polarização. 

E sei que não é uma coisa muito popular de se dizer no Brasil, mas provavelmente, em escala global, é um fato que o principal político de esquerda da região é Hugo Chávez. O discurso que ele fez recentemente na sede da ONU, até mesmo os jornais americanos tiveram que admitir que fosse o mais interessante de todos. Quando a Al Jazeera entrevista Chávez, eles têm a maior audiência do que com qualquer outro líder internacional. É uma situação muito interessante na América Latina e uma tragédia que o Brasil não possa fazer parte disto. Porque as alianças regionais vão se tornar cada vez mais importantes para desviar o eixo político dominante. E mesmo Kirchner, na Argentina, tem sido muito mais corajoso que Lula. Ele é muito inteligente. Quando Bush disse que ele tinha que pagar todas as dívidas com o Banco Mundial, que havia feito a Argentina falir, ele disse que não era possível. "Mas", ele disse, "nós vamos pagar alguma coisa. Para cada dólar que devemos, vamos pagar um centavo." E esta foi uma operação inteligente, porque ele não disse que não ia pagar nada. E eles tiveram que aceitar, no fim das contas. Então não é o caso de dizer que nada pode ser feito, que é a visão dominante da mídia e da elite política no Brasil. A ligação entre dinheiro e poder podem ser quebradas. Mas é preciso de políticos e organizações políticas com coragem e visão.
 

E isso nos traz de volta à pergunta sobre a canção de John Lennon, "Imagine". É uma música utópica, mas ele queria que se tornasse verdadeira. E a letra é muito interessante, fala de um mundo sem religião. O que é muito importante, se pensarmos no que estamos vendo no Oriente Médio e nos Estados Unidos.
 

Está sendo lançando o romance Um sultão em Palermo, parte da de sua tetralogia islâmica. Qual a diferença em escrever a história do povo muçulmano através da ficção e contar essa história através da New Left Review, por exemplo?

Tariq Ali. Há uma grande diferença, porque quando se escreve ficção, você tem que imaginar, reconstruir estas civilizações perdidas. Quando você fala com as pessoas, incluindo muitos italianos, e lhes diz que a Sicília foi por 300 anos uma ilha árabe, eles dizem que não sabiam disso. Durante as ditaduras de Salazar e Franco, em Portugal e na Espanha, por 40 anos, praticamente nada foi ensinado sobre a história daquele lugar. Durante este período, 500 anos da história árabe na Península Ibérica foram tratadas oficialmente nos livros escolares em um único parágrafo. Eles limaram uma parte crucial da história européia. E por isso que nas novelas que escrevo tento reconstruir este passado, mostrar que houve uma época em que a Europa era genuinamente multicultural, as três grandes religiões estavam lá. E em Um sultão em Palermo é sobre um período muito fascinante do qual eu trato. Os árabes haviam sofrido uma derrota militar na Sicília. Os mercenários da Normandia estavam no poder, então tecnicamente o cristianismo estava no poder, mas a região era dominada pela cultura árabe. A língua dominante, escrita e falada, era árabe, as escolas médicas eram árabes, eles não poderiam viver sem aquela cultura pelos outros 200 anos que se seguiram. Então o meu projeto ficcional é a reconstrução desta história perdida, porque desta forma funciona muito melhor. Minha não-ficção trata mais do período atual, como Confronto de fundamentalismos (2002) eBush na Babilônia (2003).

A revista Veja classificou o senhor como "o perfeito idiota paquistanês", numa referência ao livro Manual do perfeito idiota latino-americano, de Plinio Apuleyo Mendoza. O senhor leu a reportagem, conhece a revista e o que acha deste comentário?

Tariq Ali. Não li o que foi publicado, mas se vocês me disseram o que foi escrito posso comentar. 

A revista afirma que o senhor é antiamericano, contra a democracia, apóia o Irã e chama o terrorismo de resistência. 

Tariq Ali. É uma crítica que também recebo nos Estados Unidos, então é familiar para mim. Geralmente é feita por jornalistas que nunca falaram comigo, com uma agenda definida. Qualquer um que lê os meus livros de não-ficção percebe uma coisa muito clara sobre mim: eu não acredito em religião ou políticas religiosas. Mas vivemos num mundo que tem muitos vácuos. Quando sou perguntado sobre a resistência no Iraque, eu digo que estou satisfeito com a resistência no Iraque, porque se não houvesse resistência Bush e Blair consideraria isto uma vitória triunfante. Quando Israel invade o Líbano, destrói a infra-estrutura social, massacra os civis, digo que isto é crime de guerra e, quando eles resistem, fico satisfeito com essa resistência. A atual mídia global não se vê mais como um grupo independente de jornalistas, mas sim como um grupo para defender a agenda global da ordem estabelecida. 

Conheço muito bem a política da
 Veja, que é equivalente a Time e Newsweek, mas, na verdade, estas são mais críticas que a Veja. Existem muitos pessoas e políticos, representantes desta ordem vigente, que desejam eliminar a palavra "resistência" dos dicionários. Se observarmos a história dos impérios europeus, todos os que resistiram a eles foram chamados de terroristas. Os franceses chamavam os argelinos de terroristas. Os portugueses chamavam as pessoas que combatiam em Moçambique, Guiné Bissau e Angola de terroristas. Os americanos chamavam os vietnamitas de terroristas e terroristas comunistas. Os britânicos chamavam os membros do movimento Mau Mau no Quênia de terroristas. O regime sul-africano do apartheid chamava Nelson Mandela de terrorista. Os israelenses chamam os palestinos que foram removidos de suas terras de terroristas. Você pode chamá-los do nome que quiser, mas isso não muda os fatos.

Num exercício de imaginação, como poderíamos ver o mundo hoje caso Bush não tivesse sido eleito em 2000?

Tariq Ali. Em primeiro lugar, é perigoso colocar todas as coisas na responsabilidade de um só homem, por mais tentador que seja, especialmente quando o homem em questão não é tão inteligente. O que discutimos, no caso dos Estados Unidos, não é o que é feito por um homem, mas por um sistema. Eles têm uma história imperial que remonta há 200, 300 anos. E tiveram presidentes de diferentes matizes, bons e ruins, estúpidos e inteligentes, mas que sempre defenderam os interesses do império americano. Clinton começou todo um processo em direção à guerra. A sua secretária de defesa, Madeleine Albright, defendeu as sanções contra o Iraque, que mataram mais de um milhão de crianças iraquianas. Portanto é perigoso colocar toda a responsabilidade em cima dele. Mas, em minha opinião, quando os Estados Unidos não estão totalmente no controle da situação, uma coisa muito interessante acontece. Olhem para Reagan e Bush Jr. Quando o sistema produz presidentes como eles, o que se desenvolve em torno deles é uma espécie de bureau imperial. Os políticos que dominavam a política externa de Reagan são os mesmos que estão dominando a política externa de Bush: Dick Cheney, Donald Rumsfield, entre outros. 

Como o senhor vê o futuro do fundamentalismo? É possível resgatar o que a cultura islâmica tem de positivo?

Tariq Ali. Toda vez que me perguntam isto eu digo: falem com as pessoas que estão na Casa Branca. Porque o que os americanos estão fazendo no mundo árabe, sozinhos e algumas vezes com os israelenses, encoraja e amplia a resposta fundamentalista. Se eles bombardearem os abrigos nucleares no Irã, o grupo religioso seria o que mais cresceria naquele país. Este é o grande problema. Mas no Líbano atual há uma situação muito interessante. Nasrallah [o líder do Hezbollah] não é igual aos líderes da Al Qaeda. Este é um grande erro que os jornais cometem, ao afirmar que não há diferença entre estes grupos. A  Al Qaeda é uma organização que se autodenomina como um grupo terrorista e é isso que eles fazem, explodem as coisas. Há um segundo grupo islâmico, que nasceu no Egito e é forte neste país, na Jordânia e na Síria. Um grupo não muito diferente deles está no poder na Turquia, e eles são equivalentes aos partidos democratas cristãos, conservadores socialmente, e com muita vontade de colaborar com o poder imperial, se esta chance lhes for dada. O terceiro grupo é este representado pelo Hezbollah, que surgiu da recente ocupação do Líbano por Israel nos anos 1980. E é um grupo que surgiu para defender os pobres do sul do Líbano contra os ataques externos, depois que os palestinos foram derrotados e expulsos de lá. Por isso que o Hezbollah é popular no Líbano hoje, não somente entre os muçulmanos, a maioria dos cristãos e judeus libaneses também os defende depois do que Israel fez. 

Então eles têm que agradecer aos Estados Unidos e Israel por gerarem um líder nacionalista árabe extremamente popular pela primeira vez em todo o mundo árabe. E as pessoas comparam Nasrallah com os líderes árabes da região, que são totalmente corruptos ou se vêem como o braço direito do poder imperial global, prontos a seguir o que este lhe indicar o que devem fazer. Um dos mais corruptos é o governo de Mubarak, no Egito, que parece um zumbi, mas ainda exerce o poder com o apoio americano. E se você perguntar nestes países às pessoas quem elas preferem seu líder atual ou Nasrallah, 90% diria Nasrallah. Porque ele tem resistido, não se ajoelhou, apesar de não ser tão forte. E diz: "Vocês invadiram nosso país, estão nos bombardeando, mas não vamos desistir, vamos combatê-los a nossa maneira.".
                                                                              publicado originalmente por Bruno Dorigatti


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