Estudos produzidos principalmente a partir da década de 1970, como
os de Ciro Cardoso, Kátia Matoso, Flávio Gomes, Robert Slenes e Sidney Chalhoub
têm mostrado um universo muito mais complexo que aquele descrito e estudado por
vários Historiadores anteriores. Sheila de Castro Faria em “A Colônia em
movimento” ao analisar a história das famílias, a dinâmica de áreas rurais e a
expansão das atividades econômicas, relata que nestes estudos os negros
vêm surgindo como agentes históricos, mesmo que com certo desprestígio.
Em recentes pesquisas, dentre estas as de Chalhoub, emerge uma
nova visão do comportamento escravo e da rebeldia e posicionamento dos mesmos
diante das adversidades. De acordo com Flávio Gomes passa a haver uma
contestação das concepções que viam as relações senhor/escravo marcadas tão
somente por uma visão paternalista da escravidão. Há uma maior ênfase na
descrição dos quilombos e seus líderes de caráter revolucionário com maior
consciência de suas ações, além da análise de outras formas de resistência,
como determinadas negociações buscando melhorias em sua vida cotidiana, que até
então foram descritas como passivas e de caráter histórico desmerecido. Estes
estudos têm demonstrado que estas resistências devem ser entendidas não como
“passivas”, mas sim como “uma das faces das complexas lutas vivenciadas
pelos escravos e que tinha como contraponto a reelaboração permanente das
relações com seus senhores”.[2]
O que se pode entender destas formas de resistência, é que através
delas, os escravos buscavam se reconstituir como pessoas, alterando,
modificando e adequando a dominação senhorial na tentativa de reconstruírem
suas vidas. Trata-se de novos meios para enfrentar o sistema, que não se
limitou a insurgências e fugas. Gomes relata, por exemplo, que negros
escravos no Caribe estavam muito bem informados a respeito das discussões no
parlamento inglês, “e tentavam na medida do possível, tirar
proveito de tal situação, a partir de suas próprias lógicas”.[3]
Outra idéia difundida e muito questionada, e que tem na obra de Gilberto
Freire “Casagrande e senzala” sua principal argumentação, é a da idéia de
paternalismo e benignidade da escravidão, com uma relação muito próxima, e
muitas vezes promíscua entre senhor/escravo. Tal visão tem sido alvo de inúmeras
críticas nos anos que sucederam a sua publicação (1930), provocando vários
debates. As pesquisas dos autores citados anteriormente não demonstram tal
paternalismo. Estas pesquisas buscam dar voz a estas pessoas escravizadas,
apreendendo discursos e argumentos para compreender sua percepção diante do
cativeiro. Chalhoub acrescenta que
“o mito do caráter benevolente ou não violento da escravidão no
Brasil já foi sobejamente demolido pela produção acadêmica das décadas de 1960
e 1970 e, no momento em que escrevo, não vejo no horizonte ninguém minimamente
competente no assunto que queira argumentar o contrário”.
Sobre a formação dos Quilombos também há uma enorme gama de livros e
artigos publicados que nos apresentam inúmeras facetas desta forma de
rebeldia. A mais conhecida destas formas de rebeldia, e que realmente se
destacou fora de fato à fuga e a conseqüente formação dos quilombos. Isto
ocorreu desde a chegada dos primeiros africanos ao Brasil. Os quilombos
alarmavam e preocupavam as autoridades desde meados do século XVI, tanto que
propiciou no ano de 1699, a isenção de punição para aquele que matasse um
escravo fugitivo no momento de sua captura. No ano de 1701 os famosos caçadores
de negros fujões, conhecidos entre outros nomes, como capitães do mato, recebem
concessão que será regulamentada em 1724, o prêmio de seis oitavas de ouro por
cabeça de negro aquilombado morto em combate. Apesar das perseguições e da
violência a que eram submetidos os negros recapturados, os quilombos não
deixaram de se reproduzir.
De acordo com Lima, os negros apesar de buscarem lugares de difícil
acesso para se esconderem, não procuravam se afastar tanto assim, por
necessitarem do contato com povoações para a aquisição de gêneros que não
pudessem produzir. Os mesmos se utilizavam tanto de roubos quanto de
negociações para esta aquisição. Quando se faz alguma referência a quilombos, a
primeira coisa que nos vem à cabeça é Palmares e seu conhecido líder Zumbi.
Este foi o maior de todos, tanto no que diz respeito à duração quanto à
extensão e número de habitantes. Ainda segundo Lima, o mesmo já existia
por volta de 1602-1608 e sua queda só se dará em 1694.De acordo com Moura,
“Palmares foi à maior manifestação de rebeldia contra o escravismo na América
Latina e durante seu período de duração desestabilizou regionalmente o sistema.
Diferentemente da opinião de Moura, Lima diz que os quilombos não
ameaçavam o sistema, mas ocasionavam certo desgaste ao seu funcionamento causando-lhe
sérios prejuízos materiais; não tanto por suas investidas contra os povoados ou
por recursos desviados, mas pelo grande número de negros que mantinham
afastados do processo produtivo.
O que estas pessoas buscavam era de fato uma reordenação no
sistema ao qual estavam inseridas de forma extremamente desfavorável. Por não
se conformarem com sua situação, buscaram meios de mudanças no rumo de suas
vidas. Sabe-se que a condução do destino de uma pessoa escravizada é anulada ou
reduzida ao limite, mas mesmo assim, em muitos momentos os mesmos conseguiram
obter mudanças significativas em suas relações, e ajudar, mesmo que lentamente,
a desestruturação do sistema escravocrata. Thornton nos revela que em condições
difíceis,
sempre há pessoas, quer exploradas, quer privilegiadas, que não vêem
como mudar ou melhorar sua sorte seguindo as regras do sistema. Essas pessoas
procuram ir além das circunstâncias que a escravidão lhes impõe e exigem mais
do que seus donos ou governantes estão dispostos a dar lhes por livre vontade.
Esses descontentes eram os resistentes, os rebeldes ou os fugitivos. Cada um a
seu modo e de acordo com seus próprios meios, procurava alterar o sistema e
suas regras.
Neste contexto é que talvez se
enquadre o quilombo de Carukango. Este quilombo teria sido um dos maiores da
História do Rio de Janeiro, e quem sabe o maior. Carukango teria sido um
escravo proveniente da atual região de Moçambique e teria sido lá em sua tribo
membro de uma família real. Isto seria um dos motivos que o levariam a se
revoltar constantemente com o cativeiro sendo visto como um escravo arredio e
problemático. Carukango teria pertencido ao capitão Antônio Pinto, fazendeiro
da região de Nossa Senhora das Neves, região bastante extensa a época e que
ficava no município de Macaé, e que hoje se encontra também dividido com o
município vizinho de Conceição de Macabu.
Segundo o jornalista Hélvio Gomes Cordeiro, nesta fazenda o escravo Carukango
teria recebido a denominação de Dodô Moçambique, e que segundo o jornalista,
não foi aceito por Carukango. Hélvio também relata que Karukango teria
vivido na fazenda por aproximadamente oito anos e teria, por conta de sua
rebeldia, sofrido constantes castigos que acabaram por deixá-lo com uma
deformação na perna esquerda acabando por ficar manco. Carukango seria
uma pessoa de personalidade forte, que acabava por incentivar comportamentos
arredios para com seus senhores por parte de outros escravizados. Tinha fama de
feiticeiro por manter firme suas crenças religiosas e seus costumes que vieram
com ele de sua terra mãe África. Carukango seria o tipo de escravizado que se
enquadraria na definição de Thornton como o que almejava a queda
definitiva do sistema de escravidão colonial e a substituição do governo da
classe dominante por um comandado pelos antigos escravos.
Carukango teria fugido pelo menos duas vezes
antes de sua fuga definitiva e da formação de seu quilombo na serra do deitado.
A fuga definitiva teria ocorrido no ano de 1822. No dia da fuga Carukango teria
matado o capataz Corisco, que seria o responsável por muitas das surras que
teria tomado durante os mais de oito anos em que vivera na fazenda do Capitão
Pinto. De acordo com Hélvio Gomes, na noite da fuga os fugitivos arrombaram
o armazém da fazenda levando tudo que poderiam e lhes seria
necessário. Teriam também degolado alguns escravos velhos que não tinham
condições de fugir para que estes não os delatassem. Os agora livres seguiram
para a já citada serra do deitado e lá teriam se estabelecido passando a
cultivar plantações variadas que iriam lhes servir de alimento.
Do quilombo estes homens saiam para saquear propriedades trazendo
consigo escravizados por vontade própria e em alguns casos a força, fato que
ocorria com mais frequência em relação as mulheres.
Ainda segundo Hélvio Gomes, Carukango como
líder quilombola exigia daqueles que passassem a acompanhá-lo, que
a partir daquele momento deixassem de lado suas crenças cristãs e a
linguagem do dominador, passando a usar a "linguagem da mãe África".
Este último ponto é questionável, visto que os escravos provenientes do
continente africano vinham de lugares diferentes,
falavam línguas muito difusas tendo em vista a imensidão de tribos
existentes em Angola e Moçambique apenas.
Os constantes ataques as fazendas e os
consequentes prejuízos dados aos fazendeiros locais fez com que os mesmos
começassem a tomar medidas para conter os problemas causados e buscar encontrar
e destruir o quilombo de Carukango. Hélvio Gomes nos conta que o capitão Chico
Domingues e Antonio Pinto teriam se organizado para destruir o quilombo pedindo
auxílio ao Coronel Antão de Vasconcellos que viria do Espírito Santo para esta
missão. A milícia do Coronel Vasconcellos se uniu as forças que já se
encontravam em Macaé a sua espera. Seguiram em direção a serra do deitado e
teriam disputado algumas batalhas antes do confronto final. Os quilombolas
tinham a vantagem de conhecerem o local. A captura de um membro do quilombo
fez com que este revelasse o local exato do quilombo. Em seguida o
Coronel colocou em prática um plano em que os acessos ao quilombo foram
bloqueados deixando os seus membros em uma situação crítica. Nas palavras de Hélvio
Gomes, os milicianos ao chegarem ao topo do platô teriam encontrado "diversas
plantações que cobriam a terra tendo ao centro uma enorme casa de pau a pique
com telhado de palha. Esta que aparentava ser a casa principal, escondia, na
realidade, a boca da gruta, que era onde viviam os negros".
Com a chegada das tropas do coronel houve uma sangrenta batalha. Haviam
em torno de 200 quilombolas entre homens, mulheres e crianças armados com
garruchas, espingardas, foices e facões. O combate teria sido extremamente
desigual visto que os homens do coronel possuíam muito mais
armas e entre estas alguns canhões de artilharia pesada. Grande parte dos
quilombolas teria morrido por conta dos ataques. Alguns teriam fugido a mando
de Carukango que acreditava ainda poder recriar o quilombo em outro lugar. O
fim de Carukango e de seu quilombo tem algo de lendário. A história que é
contada e que conheço a partir de conversas com a Historiadora Conceição
Franco, uma grande estudiosa deste assunto, é de que Carukango teria saído
vestindo um manto branco com um crucifixo ao peito, talvez para sensibilizar os
cristãos ali presentes. De repente ele sacaria duas garruchas e atiraria contra
o filho de Antônio Pinto matando-o na hora.
Os milicianos revidaram e Carukango seria
morto por muitos tiros tendo seu corpo em seguida sido totalmente destroçado.
As casas existentes foram destruídas, as plantações incendiadas e os
corpos jogados em um penhasco ali existente. Durante muitos anos esta
História teria poucos fundamentos para ser considerada verídica, pois havia
apenas os relatos do neto de Antão de Vasconcellos como fonte, e que dissera
ter ouvido de seu avô quando criança os relatos sobre o ocorrido. Mas
quase 200 anos depois do acontecido foi encontrado pela Historiadora Conceição
Franco na Igreja do Trapiche documentos eclesiásticos que confirmariam toda a
História que Antão de Vasconcellos contara a seu neto, e que este publicara em
livro. Pesquisadores como Hélvio Gomes, Conceição Franco e Marcelo Abreu buscam
agora quem sabe, encontrar vestígios e artefatos do antigo Quilombo que identifiquem sua exata localização.
Cordeiro, Hélvio Gomes. Carukango - O
príncipe dos escravos. Editora Grafimar, Campos dos Goitacases,
2009.
. THORTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do
mundo Atlântico, 1400 – 1800/Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra e abolicionismo.
-Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.
MOURA, Clóvis. Quilombos. Resistência ao
escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1993, pp.38.
GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: Mocambos
e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro,
Arquivo Nacional, 1995,pp.17-19.
CHALHOUB, Sidney. . Visões da liberdade: uma
história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.pp.290.
Prezados, boa noite!
ResponderExcluirAguardo a transcrição paleográfica de três processos datados de 1831, 1832 e 1848, sobre rebeliões e ataques de escravos aquilombados nas regiões de Conceição de Macabu e Macaé. Dois desses processos (que se complementam) trazem informações que são tradicionalmente atribuídas ao Carukango, segundo a principal fonte literária: Evocações, Crimes Célebres em Macahé, de Antão Vasconcellos. Em breve teremos novidades chocantes sobre esse misterioso quilombo.
Abraço,
Marcelo Abreu Gomes
Conceição de Macabu-RJ