Recorrer
à justiça para conseguir ou defender direitos é algo muito comum nos dias
atuais. Pessoas de todas as classes sociais o fazem a cada dia em maior número.
“Tudo” se resolve judicialmente hoje. Para nós pessoas livres do século XXI
isto não é mais uma novidade, mas na segunda metade do século XIX foi um
recurso que pode dar liberdade a muitas pessoas que estavam submetidas à
infâmia do cativeiro. Estudos realizados nas últimas décadas tem revelado um
bom número de processos judiciais em que escravizados foram a justiça para
conseguir sua liberdade. Muitos cobravam alguma antiga promessa de seu senhor.
Outros já possuíam o dinheiro para compra da alforria e outros queriam apenas
provar que nasceram livres nestas terras e que foram escravizados
“ilegalmente”.
As
últimas décadas do século XIX tem muito a nos dizer sobre estes processos. É
nesta época que escravos puderam passar a utilizar seus ganhos acumulados e
direcioná-los para a compra de sua liberdade. Pode parecer estranho para alguns
imaginarem escravos com dinheiro, mas isto ocorria. Os escravos tinham dias de
folga durante a semana, que invariavelmente era o domingo, por ser dia dedicado
a religiosidade cristã. Mas muitos conseguiram além deste dia santo, outro dia
da semana que dedicavam para trabalhar em proveito próprio e de forma
remunerada para outros senhores. Alguns escravos tinham a função de escravos de
ganho, que trabalhavam geralmente na zona urbana vendendo ou praticando algum
trabalho braçal remunerado. Parte desta renda era entregue a seu senhor, que
muitas vezes vivia apenas destes ganhos.
Consultando arquivos de ações de liberdade ocorridas em Mariana,
cidade de Minas Gerais de fins do século XIX a economista Maria Heloísa
Teixeira relata que vários escravos acionaram a justiça se baseando na lei de 7
de novembro de 1831 que instituiu pela primeira vez no Brasil a proibição do
tráfico de escravos vindos de fora do país,
transformando assim todos os africanos que desembarcassem nestas terras
após esta data em pessoas livres. Maria
Heloísa relata também que a partir de 1871 há uma maior intensificação do
número de processos, por ser este o ano em que a justiça permitirá que escravos
comprem sua liberdade através do pecúlio acumulado. A autora acredita que os escravos perceberam
que os alicerces do regime estavam ruindo e passaram a lutar com mais
intensidade por sua liberdade através dos meios jurídicos. “Tais processos, comumente chamados de ações
de liberdade, revela que, embora na manumissão de um escravo predominasse a
vontade senhorial, havia também a possibilidade de o cativo ser o agente da
própria liberdade”. (Teixeira, 2012).
Como escravos não possuíam direitos e eram considerados
coisas, não era possível que os mesmos acionassem a justiça diretamente para conseguir
algum benefício. Isto ocorria através de uma pessoa livre e idônea que se
dispusesse a fazê-lo. Este período de
fim de século e da conquista do direito da compra da liberdade coincide
justamente com o desenvolvimento do abolicionismo, fato este que irá fazer com
que escravos encontrem muitas pessoas livres e com boas posições sociais que
lhes ajudarão com tais ações. A Historiadora da UFRJ Adriana Pereira de Campos
cita que as redes sociais eram importantes instrumentos para os escravizados
alcançarem determinados benefícios como melhores condições de vida e a tão
sonhada liberdade.
“Além da dimensão legal, a alforria e o pecúlio
partilhavam um aspecto importante como instrumento de negociação entre senhores
e escravos. Para conseguir a liberdade, o cativo precisava corresponder à
lealdade esperada por seu senhor. Nos registros de noventa e duas cartas de
liberdade, abrigadas no Cartório do Segundo Ofício de Vitória/ES, encontramos o
recurso frequente ao instituto do pecúlio. Em tais documentos, pode-se
constatar que o escravo, para obter as somas necessárias à compra de sua
liberdade, mantinha-se estreitamente ligado aos seus senhores. Por meio dessa
aproximação, o cativo lograva executar tarefas envolvendo rendimentos
monetários. Outras vezes, o escravo buscava um homem livre, de suas relações,
que pudesse lhe adiantar o valor requerido, colocando-se, em troca, sob a
proteção dessa pessoa”.
Ao fazer uma pesquisa para a conclusão de um curso de pós-graduação
em Cultura Afro Brasileira, deparei-me com uma ação de liberdade nos arquivos
da Secretaria de Patrimônio Histórico de Macaé. Ele me foi “apresentado” Pela
Historiadora Conceição Franco, responsável por inúmeras pesquisas referentes à
História do município. O documento
datado de 1881 era uma ação da escrava Fausta, 30 anos que tentou comprar sua
liberdade e a de seu filho no cartório de segundo ofício de Macaé. Fausta
pertencia ao Visconde de Mauá, personagem muito conhecido da História do Brasil
que teve importante participação no desenvolvimento industrial brasileiro na
segunda metade do século XIX.
Segundo a Doutora em História Ana Lúcia Nunes Penha,
Fausta tentou comprar sua liberdade se utilizando de uma quantia de 700.000
réis, valor este considerado elevado para um escravo (Penha, 2008). Fausta
teria um acordo com o Barão em que assim que ela conseguisse o valor poderia
comprar sua liberdade. Fausta, assim como muitos outros escravizados, teria
conseguido dinheiro trabalhando remuneradamente em seus dias de folga.
O que Fausta não esperava era que o Visconde iria falir.
Por conta de suas dívidas, o Visconde perdeu muitas de suas propriedades e
entre elas a fazenda onde a escrava vivia na região serrana de Macaé. A fazenda Atalaia passou para as mãos do Banco
do Brasil e em seguida para novos donos, Rodrigo Ferreira Borges e Macedo
Sobrinho, que seriam na verdade procuradores do Banco do Brasil com poderes
para negociar todos os escravos da fazenda. Toda essa reviravolta acabou
dificultando a compra da liberdade por parte de Fausta, mas que mesmo assim
teria alcançado a liberdade, através da compra no ano de 1884, depois de
despacho a seu favor.
Não sabemos do paradeiro de Fausta e seu filho após
conseguir a sua liberdade, e nem se permaneceu vivendo livre após este
acontecimento. Existiram muitos outros casos parecidos em que pessoas já livres
do cativeiro tiveram o infortúnio de serem sequestrados e recolocados na
escravidão. Quando isso acontecia, novamente o recurso às ações de liberdade
eram os instrumentos utilizados para conseguirem provar que eram de fato
pessoas livres.
As pesquisadoras da Biblioteca Nacional Maria Morado e
Mariane Silva Duarte apresentam na edição de julho de 2014 da revista da
Biblioteca uma carta de uma mãe que lutou para libertar seus filhos
escravizados ilegalmente. Maria Nunes dos Reis relatou em uma carta datada do
ano de 1836 que seus três filhos haviam sido levados ao cativeiro de forma
ilegal, já que sua filha, Maria Madalena fora nascida de ventre livre. Pedro,
outro filho teria sido libertado por sua antiga senhora, enquanto que seu
terceiro filho, Paulo, também nascera de ventre livre. De acordo com a
Constituição de 1824 era proibido submeter uma pessoa livre ao cativeiro, fato
este que era considerado crime e punido com pena de prisão para quem
desobedecesse a lei (Dias, 2010). Mas para uma pessoa negra naquela época seria
muito difícil conseguir provar que não era de fato um escravo.
Maria Nunes teria sofrido um verdadeiro calvário e
enfrentado interesses poderosos para reaver seus filhos, já que eles estavam
sob a posse de autoridades poderosas da província de Goiás. A luta de Maria
durou muitos anos e infelizmente não sabemos o que ocorreu com ela e seus três
filhos, mas é possível imaginar quanto sofrimento não deve ter passado esta mãe
na luta pela liberdade de seus filhos.
O acesso à justiça passou a ser uma possibilidade para
aqueles que sofreram inúmeras perversidades ao longo de séculos de escravidão e
que viram na referida lei uma chance de diminuir seus sofrimentos. Maria e
Fausta são apenas dois exemplos entre milhões de pessoas que sofreram de
diferentes formas as agruras do cativeiro.
As lutas permaneceram pelo restante daquele século de
diferentes formas. A escravidão já estava com seus dias contados, mesmo que
isto representasse poucas melhorias nas vidas daquelas pessoas. A liberdade
abria possibilidades principalmente de locomoção, mas ainda não representava
condições dignas de trabalho e de vida para negros e afrodescendentes recém-libertados.
O século XX será de constantes lutas em busca de uma
verdadeira cidadania para estas pessoas que não receberam direitos de fato, mas
sim a exclusão social agora mascarada pela marginalização e o preconceito de
uma sociedade que se esforçou para tentar apagar seu passado escravocrata
passando agora a não mais utilizar o negro em trabalhos remunerados, mas em
buscar “embranquecer” sua sociedade com a imigração europeia.
Em muitos lugares
os sofrimentos de Maria e Fausta permaneceram por muitas décadas após a
abolição e os gritos agora se não mais clamam por liberdade, ecoam hoje em
busca de conquistas básicas necessárias a vida de todo e qualquer ser humano.
Bibliografia.
Campos,
Adriana Pereira. Escravidão e liberdade
nas barras dos tribunais. Artigo acessado em 17 de setembro de 2014 na
página http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao09/materia03/texto03.pdf.
Dias,
Silvania de Oliveira. As ações de
liberdade de escravos na justiça de Mariana. 1850-1888. Dissertação de
Mestrado, página 12. Ouro Preto, 2010.
Morado,
Maria de Fátima da silva. Duarte, Mariane Silva. Mãe coragem. Revista de História da Biblioteca Nacional. Página
90-91, julho de 2014, número 106.
Penha,
Ana Lúcia Nunes. Todas as cores na educação. Escravidão e
abolição no município de Macaé. Rio de Janeiro, Editora Quartet. Página
142-143.
Teixeira, Heloisa
Maria. Injusto cativeiro: a luta dos
africanos pela liberdade (Mariana, segunda metade do século XIX). XVIII Encontro regional
(ANPUH-MG). Acessado em 17 de setembro de 2014 na página http://www.encontro2012.mg.anpuh.org/resources/anais/24/1340764056_ARQUIVO_Injustocativeiro-ANPUH2012.pdf.
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