O Brasil foi um dos primeiros países
americanos a conhecer a escravidão e o último a aboli-la.[1]
Durante quase quatrocentos anos, indígenas, e posteriormente negros africanos,
foram utilizados como instrumentos de produção de riquezas, através da
exploração de sua força e energia. Segundo Emilia Viotti, a escravização do
homem negro africano foi à fórmula encontrada pelos europeus para a colonização
do novo mundo.[2] No caso
do Brasil, constituído como um apêndice da metrópole portuguesa, incorporado ao
novo circuito econômico como uma economia voltada para a agro-exportação, era
preciso atender a demanda daqueles que para cá vieram se instalar e produzir
gêneros variados, além de explorar os recursos existentes. Para isto, fazia-se
necessário um vultoso contingente de braços para o trabalho nas lavouras, que
de acordo com Florestan Fernandes seria utilizado como uma modalidade de energia que podia ser concentrada e utilizada
intensivamente através da organização social do trabalho escravo como se o
organismo humano fosse uma máquina.[3]
Não se sabe ao certo, várias são as
estimativas, mas calcula-se que tenham entrado em nosso território algo entre
três e cinco milhões de pessoas vindas de muitas regiões do continente
africano, fato que ficou conhecido como “diáspora africana”, e que acabará por
produzir uma simbiose de culturas em nosso país.[4] Deve-se
enfatizar que não foram “africanos” que vieram para a América, mas sim diversos
povos de um imenso continente chamado África, com diferenciações extremas entre
si, e por isto não é possível generalizá-los como africanos de um modo geral.
Também devido a isto, a escravidão no Brasil não pode ser vista como um fato
homogêneo, que teria ocorrido da mesma forma em todo o tempo histórico e em
todas as regiões em que se estabeleceu, e sim como um fenômeno multifacetado,
em que várias adequações e particularidades tiveram espaço. Da mesma forma o
homem e a mulher africana não podem ser vistos como tem sido, ora como “herói”,
que luta, comanda revoltas, desafia seu senhor e cria seus ajuntamentos
chamados quilombos, e muito menos como o conhecido “preto velho”, ou a “mãe
preta” subservientes, passivos e obedientes a todas as ordens de seus senhores.
É claro que ambos os sujeitos existiram e coexistiram. Mas estes estereótipos
não apresentam o período e seus atores de forma clara. Autores como Fernando
Henrique Cardoso e Jacob Gorender escreveram trabalhos em que defendiam teses
em que o escravo era colocado e se via propriamente como “coisa”.[5] Um
fato que pode ir contra tais preposições e que se pode entender como uma
demonstração onde os negros não estavam tão passivos assim, e nem se
posicionando como “coisas”, fora a criação da lei nº4 de 10 de junho de 1835, que
determinava a punição de todo escravo que viesse a atentar contra a vida de seu
senhor com a pena de morte.[6]
Tal lei só poderia ter sido editada devido à forte luta dos escravos por sua
liberdade, acabando por atentar contra a vida de seu senhor. Enfatizo que no
momento da criação de tal lei, os abolicionistas e todas as vozes que se
voltaram contra o nefasto regime ainda não se faziam ouvir.
Estudos
produzidos principalmente a partir da década de 1970, como os de Ciro Cardoso,
Kátia Matoso, Flávio Gomes, Robert Slenes e Sidney Chalhoub têm mostrado um
universo muito mais complexo que aquele descrito e estudado por vários
Historiadores anteriores a este período. Sheila de Castro Faria em “A Colônia
em movimento” ao analisar a história das famílias, a dinâmica de áreas rurais e
a expansão das atividades econômicas, relata que nestes estudos os negros vêm surgindo como agentes
históricos, mesmo que com certo desprestígio.[7]
Estes autores concordam que não é mais
possível imaginar o período da escravidão com o homem negro preso a correntes e
vigiado o tempo inteiro, mesmo sabendo que este fato ocorreu, e que o homem negro
fora alvo de inúmeras atrocidades cometidas ao longo da maior parte de nossa História.
A violência do regime não pode ser contestada. A questão é que não tivemos
apenas estes fatos. Como bem observa Chalhoub quando relata que a “violência da escravidão não transformava os
negros em seres incapazes de ação autonômica, nem em passivos receptores de
valores senhoriais, tampouco em rebeldes valorosos e indomáveis.[8]
Em recentes pesquisas, dentre estas as de Chalhoub,
emerge uma nova visão do comportamento escravo e da rebeldia e posicionamento
dos mesmos diante das adversidades. Estes estudos têm demonstrado que estas
resistências devem ser entendidas não como “passivas”, mas sim como “uma das faces das complexas lutas
vivenciadas pelos escravos e que de
acordo com Flávio Gomes passou a haver
uma contestação das concepções que viam as relações senhor/escravo marcadas tão
somente por uma visão paternalista da escravidão. [9] Há
uma maior ênfase na descrição dos quilombos e seus líderes de caráter
revolucionário com maior consciência de suas ações, além da análise de outras
formas de resistência, como determinadas negociações buscando melhorias em sua
vida cotidiana, que até então foram descritas como passivas e de caráter histórico desmerecido e que tinha como
contraponto a reelaboração permanente das relações com seus senhores”.[10]
O que se pode entender destas formas de resistência, é
que através delas, os escravos buscavam se reconstituir como pessoas,
alterando, modificando e adequando a dominação senhorial na tentativa de reconstruírem
suas vidas. Trata-se de novos meios para enfrentar o sistema, que não se
limitou a insurgências e fugas. Gomes relata, por exemplo, que negros escravos no Caribe estavam muito bem
informados a respeito das discussões no parlamento inglês, “e tentavam na medida do possível, tirar
proveito de tal situação, a partir de suas próprias lógicas”.[11]
Outra ideia difundida e muito questionada, e que tem na
obra de Gilberto Freire, “Casagrande e senzala” sua principal argumentação, é a
da ideia de paternalismo e benignidade da escravidão, com uma relação muito
próxima, e muitas vezes promíscua entre senhor/escravo. Tal visão tem sido alvo
de inúmeras críticas nos anos que sucederam a sua publicação (1930), provocando
vários debates. Podemos afirmar que as pesquisas dos autores citados
anteriormente não demonstram tal paternalismo. Estas pesquisas citadas buscam
dar voz a estas pessoas escravizadas, apreendendo discursos e argumentos para
compreender sua percepção diante do cativeiro. Chalhoub acrescenta que
“o mito do
caráter benevolente ou não violento da escravidão no Brasil já foi sobejamente
demolido pela produção acadêmica das décadas de 1960 e 1970 e, no momento em
que escrevo, não vejo no horizonte ninguém minimamente competente no assunto
que queira argumentar o contrário. [12]
Não é pretensão
deste trabalho aprofundar-se nesta questão. E sim apresentar aspectos pouco
conhecidos de um período ainda obscuro para a maioria dos brasileiros sobre a
escravidão brasileira. Trata-se da tentativa de discussão a respeito do
posicionamento do negro perante o cativeiro, uma análise que tentará mostrar as
ambiguidades do sistema escravista brasileiro e que o caráter paternalista e
benevolente, muito questionado nas últimas décadas, não seria definidor da
relação senhor e escravo. Entendo que
para que possamos ter uma visão ampla do assunto, nos seria necessário “ouvir”
todos os lados da questão, não apenas consultando documentos de época, ou os
textos produzidos por senhores escravocratas, ou por autores impregnados com o
pensamento de seu tempo, mas também os produzidos pelos escravizados. Sabemos
que se torna difícil tal análise tendo em vista que a praticamente a totalidade
dos escravizados estava à margem da sociedade e a estes era negado qualquer
tipo de direito, e o letramento estava entre estes. Para se ter um ideia, a
proporção de escravos que foram alfabetizados no século XIX ficava em torno de
um para cada mil.[13] É
sabido que em nossa História, educação foi, e tem sido algo reservado aos
homens mais bem situados da sociedade, e nos períodos de colônia e império era
destinado aos chamados homens “bons”. Logo, a produção de textos pelos
escravizados é algo muito difícil de ser encontrado. Mas como acabo de dizer,
difícil, e não inexistente. Um em especial, e que irei apresentar, é o tratado
proposto por escravos do engenho de Santana em Ilhéus, no estado da Bahia no
ano de 1789.[14] Neste
tratado fantástico, escravos negociam, fazem imposições, delimitam seu terreno,
se diferenciam entre si, apresentando uma proposta de como se poderia conseguir
a “paz” entre os dois grupos divergentes (senhor/escravo) dentro do mesmo
espaço de convivência. Trata-se de um claro exemplo em que podemos visualizar
os escravizados não se colocando como passivos ou indolentes, mas buscando
inúmeras estratégias, articulando, tramando, readaptando-se a novas formas de
convivência, buscando produzir um novo ambiente, uma nova forma de
relacionamento entre “opostos”, ora transgredindo, ora cedendo, buscando
resguardar tradições, cultos e acima de tudo, a própria sobrevivência. Dentre
as reivindicações, estava a que visava conseguir um pedaço de terra para
poderem plantar em proveito próprio e comercializar sua produção. Esta
reivindicação de um lote de terra para plantar em proveito próprio e obterem
lucros, ficou conhecida como “brecha camponesa”, que se constituía em uma
economia própria dos escravizados, em que podiam plantar suas roças e venderem
seu excedente, e através disto obter uma série de benefícios, não apenas para
os mesmos, mas também para seus senhores.[15]
Gomes diz que a questão foi comum no Brasil, e que além de terras, escravos
tinham o costume de possuir gado.[16]
[1] MAESTRI, Mário. O
escravismo colonial/São Paulo: Atual, 1994, pp.5.
[2][2] VIOTTI, Emília.
História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II – O Brasil monárquico,
Bertrand Brasil, 2004, pp.135.
[3] IANNI, Octavio.
Florestan Fernandes/ – 1ªedição, São Paulo: Ática, 2008, pp.230.
[4] Clóvis Moura nos diz que na América, o Brasil foi o
país que teve a maior percentagem de escravos desembarcados. Segundo Décio
Freitas, importamos cerca de 40% do total de 9.500.000 negros (segundo suas
estimativas) transportados para o novo mundo entre os séculos XVI E XIX. Para
maiores esclarecimentos ver: MOURA, Clóvis. Quilombos. São Paulo: Ática, 1993, pp.7.
[5] “Para Gorender” o primeiro ato humano do escravo é o
crime, desde o atentado contra seu senhor á fuga do cativeiro. ”Já F.H.C. dizia
que “embora fosse capaz de empreender ações humanas, exprimia, na própria
consciência e nos atos que praticava orientações e significações sociais
impostas pelos senhores.” Apud: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.p.38-42.
[9] GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: Mocambos e comunidades de senzalas no Rio
de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995,pp.17-19.
[10] Idem, pp.30-31.
[11] Ibdem, pp.17.
[12] CHALHOUB, Sidney. Op.cit. p.35.
[13] REIS, João José. SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência escrava no Brasil escravista.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp.16.
[14] Tratado proposto a Manoel da Silva Ferreira pelos seus
escravos durante o tempo em que estiveram aquilombados. Este documento foi
publicado por Stuart Schwartz em “Escravos,
roceiros e rebeldes”, EDUSC, 2001, pp.119-121.
[15] CARDOSO, Ciro Flamarion S. Escravo ou camponês? : o protocampesinato negro nas Américas. –
São Paulo: Brasiliense, 2004, p.73.
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