O escravo e a posse da terra
A concessão de pequenos lotes de terras a escravos foi algo muito difundido tanto na América espanhola quanto no Brasil enquanto por aqui vigorou a escravidão. Jacob Gorender em “O escravismo colonial “revela que os portugueses já praticavam a concessão de terras a escravos, bem antes de iniciarem a colonização da América portuguesa.[1] De acordo com Faria os estudos referentes a este assunto foram iniciados no Brasil a partir da década de 1970, em concordância com as pesquisas de Ciro Cardoso.[2] A designação do termo “brecha camponesa” é de autoria de Tadeusz Lepkowski que inicia as pesquisas sobre o tema na América central, mais especificamente sobre o caso do Haiti. [3]
No Brasil, Antes de Cardoso foram feitas apenas algumas referências ao assunto, e mais recentemente pesquisadores como João Fragoso e Manolo Florentino, abordaram o problema e o definiram como uma forma de melhor adequação ao cativeiro. Na década de 1980 assistiu-se a grandes discussões a respeito da questão, em que Cardoso e Gorender travaram um acirrado debate. A polêmica concentrou-se em torno da inclusão ou não da produção particular do escravo como parte das estruturas da economia colonial. Para Gorender, este sistema de economia cativa não adquiriu caráter estrutural, por se tratar de uma atividade secundária, em que quando os senhores precisassem, retirariam os escravos para a grande plantation. Não é pretensão neste trabalho aprofundar a discussão a respeito das estruturas, ou da estrutura econômica da colônia portuguesa. O proposto aqui é questionar como tal ocorrência se torna algo razoavelmente comum; o escravo “possuidor’ de terras e com economia própria.
Faria ao analisar o período colonial brasileiro nos relata que a idéia que tínhamos até bem pouco tempo atrás da escravidão tem sido alvo de discussões acirradas. Segundo a autora, inúmeros outros aspectos teriam de ser analisados para se entender a tão longa duração do período de escravidão nas Américas. A partir das novas abordagens sobre a época, o escravo, segundo suas pesquisas, “deixa de ser um agente passivo, e se transforma num agente ativo”.[4]
Autores como Manolo Florentino, Robert Slenes e Stuart Schwartz têm analisado a relação entre senhores e escravos “enquanto agentes ativos e construtores, ambos, de relações sociais, mesmo que tensas, onde concessões e adequações eram não só necessárias, como aceitas”.[5]
Magda Ricci nos diz que:
Desde a época ao redor do centenário da abolição, em 1988, nossos livros sobre os tempos do cativeiro têm trazido a público alguns inusitados escravos. Eles vêm saindo do universo quase auto-suficiente do trabalho nas fazendas de cana e café. Vêm entrando em outros espaços, criando complexas e fascinantes situações a seus senhores e a nós historiadores e leitores do século XX.[6]
Todas estas novas avaliações têm produzido uma quantidade considerável de trabalhos e olhares a respeito de nosso passado, e a diversidade de fatos surgidos tem sido muito interessante, principalmente por resgatar um novo retrato do período colonial e imperial brasileiro e das relações entre os grupos existentes. O fato de cativos terem obtido acesso a terra, fato que conseqüentemente lhes proporcionou uma economia própria, mesmo que não tenha sido algo que tenha ocorrido de forma estrutural, como assinala Gorender, nos possibilita indagar a respeito não apenas da forma como tal fato se tornou concreto, mas também das possibilidades que passam a surgir desde então. Gomes revela que além de “tirarem dessas lavouras gêneros para a sua alimentação, também produziam excedentes, os quais procuravam comerciar.” Temos aqui um fato que para muitos pode parecer inusitado; a idéia do escravo comerciante. De fato isto ocorreu, e de várias formas.
Os negros negociaram não só a partir do que obtinham em suas roças concedidas, mas também nos quilombos por meio daquilo que lá produziam. Este comércio era feito com taberneiros e donos de vendas das proximidades, negociados com outros cativos ou em outros mercados.[7] Fora fato comum a negociação entre pequenos comerciantes e escravos cativos ou libertos de vários gêneros produzidos em suas roças, fato que não ficou limitado apenas ao Brasil, mas também a maior parte da América.
Em várias regiões tanto no Brasil como no restante da América, com suas roças, escravos e quilombolas, com variadas práticas econômicas, acabaram por permitir a formação de um campesinato negro ainda durante a escravidão... Os escravos e as comunidades quilombolas existentes desenvolveram, ao que se sabe, práticas econômicas com as quais produziam excedentes e procuravam negociar. Em muitas regiões os escravos certamente freqüentavam feiras e mercados locais aos sábados e domingos, ou seja, nos seus dias livres, onde montavam quitandas e vendiam os excedentes de sua economia própria, que tanto podiam ser gêneros agrícolas, quanto caça e pesca.[8]
Estas feiras eram locais de intensa socialização entre diversos grupos de escravizados, e que tinham em suas vidas importantes funções, que não se restringiam ao ato de comercializar. Surgiam a partir destes encontros possibilidades de se conhecerem, se organizarem e obterem informações a respeito de fatos e acontecimentos que estivessem ligados ao seu dia-dia, aos seus objetivos comuns.
Era freqüente a troca de informações entre cativos e quilombolas, que também freqüentavam as mesmas feiras a fim de venderem sua produção. Estas teias de solidariedade, conflitos e entrecruzamentos acabaram por “forjar uma configuração política complexa nas relações entre escravos, senhores, quilombolas e autoridades”.[9]
2.2. A brecha camponesa na América
A análise destas atividades foi alvo de vários estudos em toda a América, principalmente nos Estados Unidos e América central. Pesquisadores que se debruçaram sobre o tema, chegaram a variadas conclusões. Em “Escravo ou camponês, o protocampesinato negro nas Américas”, Cardoso nos apresenta diversas destas opiniões. Entre elas, uma interessante é a do pesquisador norte americano Sidney Mintz, que de acordo com Cardoso, trata-se do maior especialista no assunto, e que a respeito da brecha camponesa, a sua enorme quantidade de casos e proporção, leva o autor a questionar a própria idéia da escravidão e de um modo de produção escravista.[10] Cardoso, mesmo afirmando que a produção dos cativos tornou-se parte da estrutura do modo de produção escravista, discorda desta opinião, assim como Gorender, que com visões distintas, neste ponto concordam.
A respeito das análises dos casos, um que apesar de ter sido menos comum, mas que vale a pena ser citado é o de famílias escravas que conseguiram certa independência através de suas roças. Um caso exemplar se dá com três famílias da região de Maryland, nos Estados Unidos, em que as mesmas administravam três seções periféricas da fazenda, utilizando-se de ferramentas e animais próprios, com independência para as transações econômicas, decidindo sobre a organização do trabalho, de suas necessidades em geral, e sem a presença constante do senhor.[11] Casos como este são com certeza de infinita menor proporção, mas vale a indagação a respeito de como os grupos envolvidos acabaram por chegar a esta configuração, em que escravos com uma economia própria, comercializando seus excedentes, conseguindo auferir lucros, acabando por possibilitar a aquisição de animais e ferramentas, e do grau de “independência” elevada dos cativos, que apesar de tudo, vale frisar, não deixava de ser escravos.
A partir destes fatos, a probabilidade de conseguirem adquirir recursos que viabilizassem a compra das terras, e de sua alforria se tornava algo muito mais plausível. Sobre como estes casos podem ter ocorrido, e das relações entre os vários grupos sociais, das possíveis concessões, para Orlando Patterson
“o escravismo, como em qualquer regime econômico-social, se estabelece entre a classe dominante e a classe explorada um acordo legal ou consuetudinário que garante para a classe dominada, pelo menos de fato e às vezes de direito, certos direitos, cuja infração traz consigo o perigo de alguma rebelião”.[12]
A partir de tais análises, podemos entender este fato de variadas formas ao levarmos em conta as pesquisas e pontos de vista apresentados. Uma destas visões é a de que tal configuração pode ter sido fruto de uma nova forma de pressão desenvolvida por escravos e quilombolas, que a partir da luta para conseguir melhores condições de vida, acabavam por reorganizar o mundo em que viviam e ajudar a sua maneira, mesmo que lentamente, a minar as estruturas do regime escravocrata. Com base neste pressuposto, tentarei analisar alguns destes pontos de vista, em que divergências enormes acabaram por surgir. Como já me referi neste trabalho, a discussão entre Cardoso e Gorender centrava-se no caráter da estrutura econômica colonial, e a inserção ou não da economia escrava nesta estrutura. Este não é o nosso caso.
Em “A escravidão reabilitada”, Gorender discute a escravidão, fazendo uma análise daquilo que já fora produzido a respeito do tema, principalmente na década que antecedeu o centenário da publicação da lei áurea. Ele procura deixar claro que não questiona a existência da brecha camponesa, mas sim “o grau de generalidade e estabilidade da economia própria do escravo”. Para o autor, do ponto de vista do senhor de engenho, seria intolerável desperdício, dispensar os escravos durante um dia inteiro. Em sua avaliação, apresenta diversos casos em que a concessão do dia ou dias de folga, era negada. Cita a ordem régia de 1703, que somente fora criada por conta de outra lei da coroa portuguesa, editada três anos antes e que ficara apenas no papel.[13] Estas leis apenas teriam sido editadas por conta da resistência dos senhores de engenho em promover alguns benefícios para seus escravos, como a própria produção de gêneros alimentícios para consumo dos mesmos. Gorender alega que no referido período, a produção açucareira encontrava-se em alta e isto não permitiria a liberação dos cativos para folgarem e cultivarem em benefício próprio. [14]
A publicação da lei de 1703, seria para Gorender, a prova de que os escravos não tinham certos benefícios, e dificilmente a economia própria teria tido alguma importância. O autor cita um caso ocorrido na Bahia em 1707, em que o arcebispado condenou os senhores de engenho que obrigavam seus escravos a trabalhar no domingo, que era dia santo e deveria ser destinado ao descanso e evangelização dos cativos.[15] Cardoso nos revela que o que de fato estava ocorrendo era que a cessão destes dias para que os cativos trabalhassem em cultivos próprios, acabava por afastá-los das missas no domingo, e isto estava contrariando os interesses da igreja.[16] Prosseguindo com sua análise, Gorender nos relata que mesmo questionando a importância da “brecha”, ele nos diz que diferentemente das regiões em que o açúcar era o principal produto produzido, as áreas produtoras de café e algodão propiciavam maiores possibilidades do escravo desenvolver sua economia própria. O mesmo salienta ainda que apesar de possuir maiores possibilidades do que outras áreas houve muitos casos em que esta concessão fora desrespeitada. Sobre isto ele destaca que no ano de 1876, o fazendeiro Francisco Salles fora assassinado por escravos de sua propriedade em Campinas, os quais alegaram na justiça, os castigos impiedosos por obrigá-los ao excesso de trabalho no domingo. O fazendeiro decerto violou o limite de tolerância, o que lhe resultou fatal.[17] Gorender deixa claro que a respeito dos aspectos comerciais da economia do escravo, Cardoso tinha razão. E completa:
Tem razão Ciro Cardoso em sua crítica á minha subestimação dos aspectos comerciais da economia do escravo. Escrevi que ela admitia, quando muito, um escambo elementar, a exceção daquelas situações em que o escravo cultivava produtos de exportação, como café e o algodão. As fontes evidenciam que os escravos, com certa freqüência, também vendiam gêneros alimentícios no mercado interno e daí obtinha dinheiro para comprar artigos que o senhor não lhes fornecia.[18]
[1] GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo, Ática, 1978, p 258-265.
[2] FARIA, Sheila de Castro. Op.cit.p.290.
[3] LEPKOVSK, Tadeusz. Haití. Tomo I, Havana, casa de lãs Américas, 1968. Apud CARDOSO. Op.cit, p.54.
[4] FARIA, Sheila de Castro. Op.cit.p.291.
[5] Idem, p.290-292.
[6] RICCI, Magda. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo (1822-1850). CARVALHO, J.M.de. (resenha) Revista Brasileira de História. São Paulo, volume 20, n°39, p. 291-296, 2000.
[7] GOMES, Flávio. Op.cit.p.68-75.
[8] Idem, p.70.
[9] Ibdem.p.69.
[10] MINTZ, Sidney W. “The questions of Caribbean peasantries: a comment”, Caribbean Studies, 1961. Apud CARDOSO. Op.cit.p.57-58.
[11] MENARD, Russell R.,”The Maryland slave population, 1658 to 1730: a demographic profile of blacks in four counties”, William and Mary Quarterly, 3ª série, 32, jan.1975. Apud CARDOSO. Op.cit.p.61.
[12] PATTERSON, Orlando, The sociology of slavery, Londres, MacGibbon & Kee, 1967. Apud CARDOSO. Op.cit.p.59.
[13] As ordens régias eram ordenações emitidas pelos reis Portugueses e eram enviadas aos governadores das capitanias nas colônias portuguesas. A ordem régia de 1703 fora criada por conta da não execução da lei de 1701, criada por Don Pedro II, em que o mesmo colocou para os senhores de engenho a alternativa de fornecerem alimento aos escravos ou conceder-lhes um dia de folga. Para um maior entendimento ver Jacob Gorender, A escravidão reabilitada e Ciro Cardoso, Escravo ou camponês?
[14] GORENDER, Jacob. Op.cit. p.72-73.
[15] Idem. p.75.
[16] CARDOSO, Ciro Flamarion S. Op.cit.p.93.
[17] GORENDER, Jacob. Op.cit.p.74.
[18] Idem. p.74-75.
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