Existem
alguns acontecimentos de nossa infância que ficam guardados durante muitos anos
em algum lugar de nossa memória que não sabemos exatamente onde é este lugar.
Ouvimos histórias sobre monstros e seres fantasmagóricos horripilantes e que em
nossa frágil e inocente visão de mundo, “existem” de fato. Chegamos a conhecer
pessoas que contam “fatos” como se realmente os tivessem vivenciado. Em cidades
do interior isso é mais comum ainda. Muitos são os que podem contar uma “real”
experiência com alguma assombração. Já ouvi inúmeras. Eu mesmo tenho uma a
contar de meus tempos de criança, e que depois de alguns anos de vida e uns
poucos de estudo veio a se descortinar como a história do famoso caso de
assassinato de uma família de camponeses e o posterior enforcamento de Manoel
da Motta Coqueiro como mandante do crime.
Segundo
Armando Borges este foi o crime de maior repercussão ocorrido durante o período
imperial brasileiro (Borges, p.134). Esta repercussão seria em virtude da
grande brutalidade do crime, em que uma família inteira de camponeses teria
sido morta, e também pelas inúmeras dúvidas suscitadas em relação à culpa de Motta
Coqueiro, que teria desde o início negado ser o mandante do crime.
Em
minha infância morando no tradicional bairro da Aroeira em Macaé, ouvia como de
costume a época, várias histórias e lendas locais. Havia uma que
particularmente me deixava com muito medo. Era a lenda do homem serpente
enterrado em um túmulo amarrado com correntes no cemitério de Santana. Diziam que
ele costumava forçar as paredes do túmulo para sair, e que isto já teria
ocorrido algumas vezes. Por este motivo seu túmulo teria sido amarrado com
correntes para que não mais fugisse.
Sempre
que passava ao pé do morro que dá acesso ao cemitério ficava olhando lá para
cima com um misto de medo e curiosidade. Quando de alguns velórios que eu
acabava tendo de ir acompanhando meus pais, ficava intrigado, e às vezes
chegava a me “arriscar” a tentar, meio que timidamente, encontrar tal túmulo.
Muitos
anos se passaram até que eu conhecesse a “real” história de Manoel da Mota
Coqueiro e o que tinha de fato na lenda do homem serpente acorrentado. Vamos
conhecer então a história de Manoel da Motta Coqueiro e a relação com a lenda
de minha infância.
Manoel
da Mota Coqueiro foi um político e proprietário de terras residente na cidade
de Campos dos Goytacases que adquiriu uma fazenda em Macaé na região que hoje é
o município de Conceição de Macabu. Era
uma região de terras férteis com ligação ao canal Macaé-Campos que facilitaria
o escoamento de sua produção. Após a compra da fazenda, Motta Coqueiro começou
os preparativos para fazê-la produzir. Comprou escravos, contratou pessoas
livres e admitiu a pedido de um amigo, uma família de colonos contando com oito
pessoas que tinha como chefe o senhor Francisco Benedito da Silva. Foi ai que
começaram seus problemas.
O
Brasil vivia a época um momento de intensas transformações. Havia acabado de
extinguir seu tráfico de pessoas vindas do continente africano e aprovou uma
lei de terras (que na verdade apenas beneficiou fazendeiros e aumentou ainda mais
suas propriedades fazendo com que pessoas pobres, ex-escravos e ou os raros
imigrantes não tivessem acesso a terra) e que segundo Sergio Buarque de
Holanda, essas transformações “só poderia levar a liquidação de nossa velha
herança colonial”.
De
acordo com o Historiador Marcos Costa, autor do livro “o Reino que não era
deste mundo” esse período foi um momento de vitalidade excepcional, tanto nos
negócios quanto em questões de infraestrutura. O Brasil começava a dar alguns
passos no caminho da “modernidade”.
Mesmo
com esses passos no caminho da modernidade ainda convivíamos com o espectro da
escravidão e com uma desigualdade extremamente elevada. Algumas pessoas ainda
eram tratadas como coisas e pouco ou nenhum direito possuíam. É curioso
acreditar que um homem poderoso como Coqueiro pudesse ser condenado por um
crime tendo como testemunhas de acusação escravos e pessoas que nada
presenciaram. Em livro contando a História de Conceição de Macabu, Carlos
Marchi escreve sobre as lições do caso Coqueiro. Marchi afirma que houve uma armação política
para condenar a qualquer custo Motta Coqueiro.
Após
comprar a fazenda começou a organiza-la trazendo animais e escravos de suas
propriedades em Campos dos Goitacases. Motta coqueiro acabou por se envolver
com uma filha de Francisco. Conta-se que a esposa de Coqueiro teria ficado
sabendo do romance através de um escravo que teria flagrado um encontro.
Sua
esposa o interrogou sobre o fato, que ele obviamente negou, mas ela exigiu que
ele expulsasse a família de Francisco de suas terras. Francisco resistiu em sair, pois alegou ter muitas
benesses feitas nas terras e que havia plantios a serem colhidos. Armando
Borges conta que ao saber da recusa do lavrador de sair das terras, Dona Úrsula
teria prometido tomar providências. Dias depois Francisco e sua família foram
alvo de um ataque de jagunços que o agrediram e tentaram incendiar sua casa. Borges
afirma que “Mota Coqueiro fora acusado de mandante, fato este que o deixou
muito revoltado, pois só viera a saber do acontecido três dias depois ”.
Em
12 de setembro de 1852, novo ataque contra a casa de Francisco e finalmente o
objetivo alcançado: a casa é incendiada e sete pessoas mortas. A moça com quem
Coqueiro se envolvera consegue fugir. Coqueiro, que se encontrava na Cidade de
Campos no dia do ocorrido, foi informado ao chegar à fazenda no dia seguinte por
seu capataz Fidelis. Borges conta que ele teria ficado consternado com o fato e
teria dito que tinha certeza de que iria ser acusado de mandante do crime.
Coqueiro
teria tido um julgamento cheio de contradições e acontecimentos incomuns, como
ter escravos depondo contra o mesmo. Teria sido alvo de um complô articulado
que teria entre seus idealizadores um primo seu, que teria uma mágoa por conta
de um amor no passado que teria sido seduzida por Manuel da Motta Coqueiro.
Após
a condenação, ele foi enforcado no dia 06 de março de 1855, tendo ficado preso
na cidade do Rio de Janeiro entre 1852 e 1855. Retornou a Macaé para seu
enforcamento. Parada nos informa que os motivos para seu aprisionamento na
capital se deu devido à hostilidade dos macaenses por conta de tal terrível
crime, e segundo por conta da precariedade da cadeia municipal. A cadeia se
localizava na esquina das ruas visconde de Quissamã com governador Roberto
Silveira.
Parada nos conta que no ano de 1897 foi
encontrado um esqueleto algemado nos arredores do cemitério de Santana. Essa
descoberta foi possível devido à necessidade de aumento do cemitério. Ainda
segundo Parada o esqueleto estava em perfeito estado de conservação e foi
posteriormente colocado em exibição pública nas dependências do jornal “O
Século”. Ainda segundo este autor muitas dúvidas foram levantadas sobre a
origem do esqueleto e a conclusão a que chegaram é que deveria ser de algum
escravo morador de alguma fazenda das vizinhanças (Parada, p.25).
Com
o passar dos anos, com as histórias sendo contadas oralmente muita coisa se
perde, e outras são acrescidas. O sepultamento da Fera no cemitério de Santana,
e a descoberta mais de 40 anos depois de um esqueleto algemado podem ser os elementos
que irão construir a lenda do homem serpente (fera) com o túmulo acorrentado.
Ecléa
Bosi nos diz que “lembrar
não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje
as experiências do passado”. E essa reconstrução, os
seres humanos fazem e refazem a todo o momento. A memória é seletiva. Selecionamos
e guardamos detalhes parciais de determinados acontecimentos, e quando contamos
sempre falta algo, da mesma forma que aquele que nos ouve, ao reproduzir,
jamais contará da mesma forma.
Desta
forma a lenda do homem serpente e o caso de Motta Coqueiro chegaram até minha infância.
Muitos outros ouviram estas histórias de variadas formas, com diferentes
elementos que serviram e continuam a servir para incrementar e colorir nosso
imaginário, deixando o folclore local sempre tão apaixonante e renovado a cada
dia.
Referências.
BORGES, Armando. Histórias e lendas de Macaé. Itaperuna,
Damadá artes gráficas, 2005.
_________. O último enforcado. Itaperuna, Damadá
artes gráficas, 2004.
COSTA, Marcos. O reino que não era deste mundo. Rio de
Janeiro. Valentina, 2015.
FRANCO, Maria da Conceição
Vilela. Morte, Memória e História: a
sepultura de Motta Coqueiro como lugar de reprodução simbólica do imaginário
social macaense. Acessado no dia 20 de outubro de 2015 na página: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308165251_ARQUIVO_TEXTOCOMPLETO-01.pdf.
GOMES, Marcelo Abreu (Org). Conceição de Macabu. História das origens até a segunda
emancipação. Livro digital gentilmente cedido pelo Professor Marcelo Abreu
Gomes.
PARADA, Antonio Alvarez. Histórias curtas e antigas de Macaé. Rio
de Janeiro, Artes Gráficas, 1995.
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